Vale demonstra falta de gestão de risco, diz ex-ministra do Ambiente

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Ministra do Meio Ambiente à época da catástrofe de Mariana, Izabella Teixeira, 57, diz que o episódio de 2015 não ensinou o país a lidar com os riscos de uma atividade como a mineração.

“Como é que você tinha refeitório, escritórios, pousada numa rota possível da lama? Era previsto que isso poderia acontecer? Ou isso não estava nos cenários possíveis? Se for esse o caso, é de se perguntar se os protocolos adotados são suficientes”, disse à Folha sobre o desastre de Brumadinho, que até esta segunda-feira já era responsável pela morte de 60 pessoas.

A ex-ministra defende, por exemplo, que a população de cidades com barragens próximas passem por treinamento permanente e contem com um sistema de avisos por mensagens de celular. Teixeira ainda sugere a criação de fundos que usem parte dos royalties pagos pela mineração para atender emergências e ajudar as pessoas impactadas. “Isso é cultura de prevenção e reação. Não podemos ficar só na punição”.

Ela considera as críticas de membros do governo ao licenciamento ambiental equivocadas e simplistas. Essas, segundo Teixeira, mostram como a questão está politizada. “Falar de afrouxamento de regras e indústria da multa que só mostra o desconhecimento do que é o instrumento, seus objetivos e a as suas implicações legais”.

Qual a sensação de ver repetida uma tragédia como essa apenas três anos depois de Mariana?
Senti uma dor e uma tristeza imensas, como brasileira e como alguém que trabalha na área ambiental. Imediatamente me veio à lembrança tudo aquilo que vivi em Mariana e todas as consequências daquela tragédia. É inaceitável que isso tenha ocorrido de novo. Do ponto de vista probabilístico isso não deveria acontecer, já que se trata, essencialmente, da mesma empresa, que, pelo que se sabe, reviu seus procedimentos de segurança e suas dinâmicas de trabalho após 2015.

O país não aprendeu nada com a tragédia de Mariana?
Esse novo episódio deixa claro que o Brasil ainda não tem uma cultura de risco; simplesmente não sabemos como lidar com situações de risco. Essa cultura deveria estar presente no nosso dia a dia. As pessoas não são ensinadas a agir em situações de risco, e isso amplia o sentimento de vulnerabilidade e desamparo quando acontece uma tragédia como a de Brumadinho.

A população não tem noção do quão vulnerável ela está. Essas cidades mineiras com barragens próximas, por exemplo, deveriam ter um treinamento permanente para casos de rompimento, deveria haver um sistema de alertas nos celulares etc.

Faltam gestão de risco e avaliação de risco dos impactos. Como é que você tinha refeitório, escritórios, pousada numa rota possível da lama? Era previsto que isso poderia acontecer? Ou isso não estava nos cenários possíveis? Se for esse o caso, é de se perguntar se os protocolos adotados são suficientes. Você precisa, por exemplo, ter um plano nacional de contingência para situações de catástrofe.

Como você avalia a reação do poder público até agora?
Os governos federal e estadual, me parece, estão agindo corretamente. Nesse momento é importante demonstrar que se está cuidando da situação, mostrar solidariedade e ajudar na coordenação de esforços nacionais e internacionais.

Passada a emergência, no entanto, essas ações governamentais precisam se traduzir em medidas que discutam e revisem como se dá a atividade de mineração no Brasil e suas consequências.

Pode dar algum exemplo de mudança?
A mineração é uma atividade que paga royalties. A gente deveria, por exemplo, estar discutindo a criação de fundos que usem parte desses royalties para atender emergências e ajudar as pessoas impactadas. Imagine um fundo bem gerido, com controle social, do Ministério Público, com o qual você assegure o direito de quem for atingido por uma tragédia dessas. Isso é cultura de prevenção e reação. Não podemos ficar só na punição.

O presidente Jair Bolsonaro, em suas primeiras falas, disse que se tratava de um acidente e falou que a União não tinha nada a ver com o ocorrido. Você concorda?
Do ponto de vista do empreendimento, da operação da mina, foi um acidente, mas na percepção da sociedade, do ponto de vista das consequências, trata-se de um desastre.

O licenciamento ambiental, na lei, é de competência dos estados. Então, toda a estrutura de licenciamento ambiental e, portanto, de compliance desse sistema —punição, controle e fiscalização— é de competência estadual na esfera ambiental.

Do ponto de vista da mineração, como o subsolo é um bem da União, você precisa de uma autorização, que é dada pela nova Agência Nacional de Mineração [criada pelo governo Temer em 2017 e que substituiu o Departamento Nacional de Produção Mineral]. A União, assim, é o poder concedente nesse caso. E esse poder concedente precisa controlar tudo o que acontece em relação àquilo que ele está concedendo.

A União pode não ter responsabilidade legal direta, mas tem responsabilidade política e constitucional.

O governo tem tido um discurso crítico ao licenciamento e à fiscalização ambiental. Como a senhora vê a defesa da flexibilização desses instrumentos?
O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo em que o poder público concede a autorização para alguém explorar um bem que é de todos. Para isso ele conta com dois instrumentos técnicos: a avaliação de impacto ambiental e a avaliação de risco ambiental.

Hoje se vê muita gente falando sobre o licenciamento ambiental sem conhecê-lo. Ouvem-se declarações que sugerem profundo desconhecimento da dinâmica do licenciamento e da sua complexidade.

Claro que o licenciamento pode ser aperfeiçoado, mas nós não podemos simplificar esse debate apenas com a ideia de flexibilização. Precisamos, antes, discutir regras, critérios e tipos de autorização para depois ir para regulamentos específicos, já que não dá para discutir o licenciamento ambiental de empreendimentos menores da mesma forma que você discute o de grandes estruturas, como barragens.

Falar de flexibilização da maneira que vem sendo feita, é inaceitável, e só mostra que a questão está sendo politizada. É por intermédio do licenciamento que a sociedade pode cobrar os seus direitos de quem é autorizado a acessar recursos naturais em nome dela. Trata-se de uma relação de responsabilidade entre o poder público e o empreendedor.

Falar de afrouxamento de regras e indústria da multa é algo bastante equivocado e só mostra o desconhecimento do que é o instrumento, seus objetivos e a as suas implicações legais.

Um bom sistema de licenciamento é o melhor cartão de visitas para um país que quer se desenvolver, exportar e se relacionar com o mundo porque as regras e a segurança jurídica de investimento no Brasil passam por isso.

Pelas informações que temos até o momento, a Vale estava cumprindo todas as exigências legais na barragem que se rompeu. Ainda assim, ocorreu o desastre. O que fazer nesse caso?
Se a Vale cumpriu todos os pré-requisitos, se o licenciamento estava certo, o que aconteceu? Se não houve causa externa, os regulamentos atuais são suficientes para lidar com desafios como esse?
É importante lembrar que muitos desses protocolos de segurança são internacionais. É por isso que empresas estrangeiras podem auditar barragens aqui. A ocorrência desse novo desastre, se tudo foi mesmo cumprido, diz que é preciso discutir e rever os procedimentos, inclusive os internacionais —até porque isso também acontece em outros países.

Pela importância do Brasil na área de mineração, e pelas experiências dolorosas que tivemos, temos a responsabilidade de liderar uma discussão global sobre segurança de barragens e buscar melhorar os procedimentos. Essa discussão não pode ser pontual, mas contínua. Precisamos reconhecer que estamos errando e entender o que estamos errando.

O conceito de segurança deveria ser um dos balizadores de se ter ou não investimentos de mineração no país. Não podemos continuar explorando sem rever os protocolos e mudar o patamar de segurança.

O que a experiência de Mariana pode nos ensinar sobre a recuperação da região agora atingida?
Em primeiro lugar, as soluções de recuperação da área atingida não podem ser implementadas sem a participação da sociedade. O modo como as pessoas atingidas viviam antes da tragédia precisa ser contemplado na reconstrução das comunidades.

No plano ambiental, você vai se deparar, provavelmente, com um Brasil informal, que é a realidade das pequenas propriedades. Em Mariana, das mais de mil propriedades rurais atingidas, cerca de 90% não cumpriam o código florestal. É um trabalho imenso reconstruir as propriedades todas adequando-as à legislação e de modo que isso fomente o desenvolvimento delas. Também é importante priorizar a recuperação das nascentes.

Por fim, o modelo de governança estabelecido depois do acidente de Mariana é um modelo que poderia ser replicado. Trata-se de um modelo inovador: uma fundação com controle do Ministério Público e que responde ao poder público nas três esferas. Ela tem um papel claro: cumprir o termo de ajustamento de conduta, restaurar as áreas atingidas e administrar o fundo de reparação.

Ela é dotada de mecanismos de transparência e controle únicos. Por exemplo, um painel internacional e independente de auditoria. O dinheiro, além disso, não entra em fundos públicos, onde você não sabe o que pode acontecer.

Em suma, Mariana nos ensinou que não há um ator sozinho que dê conta: nem a sociedade, nem as empresas, nem o governo conseguem por si só enfrentar uma situação dessas.

Da FSP