Vista grossa do Estado faz tragédias acontecerem, diz procurador do MPF

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Procurador regional e coordenador da Força-Tarefa Rio Doce (que apura a tragédia de Mariana) do Ministério Público Federal em Minas, José Adércio Leite Sampaio afirma, em entrevista ao Estado, que já alertava desde 2016 que uma nova tragédia iria, inevitavelmente, acontecer no setor, uma vez que não existe fiscalização independente nas barragens de rejeitos de minério.

A lei  delega às próprias empresas o monitoramento da estabilidade das barragens de rejeitos. E a fiscalização  é praticamente nula. Foi apenas por isso, afirma, que tanto a barragem de Fundão, em Mariana, quanto a de Córrego do Feijão, em Brumadinho, foram consideradas de risco baixo quando, na verdade, estavam perto do colapso.

“No caso da Samarco, sabemos que nem todos os dados foram repassados aos auditores”, contou. “A barragem apresentava um histórico de problemas que não foi captado pelos órgãos responsáveis.” O problema foi apontado pela força-tarefa do MPF em 2016, mas nada foi feito, disse ele. “Tenho batido muito nas empresas, mas resolvi botar o dedo na ferida: se o Estado continuar fazendo vista grossa, muitas outras tragédias virão.” O rompimento da barragem da mineradora Vale, na sexta-feira passada, 25, em Brumadinho deixou, até a manhã desta quinta-feira, 31, 99 mortos e 259 desaparecidos.

A seguir, a entrevista:

A força-tarefa do MPF organizada depois da tragédia de Mariana já havia apontado o risco de outras tragédias. Por que vocês tinham essa avaliação?

Vínhamos alertando que se nada fosse feito teríamos outras tragédias. Evidentemente, não desejávamos que isso acontecesse, mas eram favas contadas.

Por quê?

Porque os parâmetros são muito abertos. Tanto que a barragem do Fundão, em Mariana, e do Córrego do Feijão, em Brumadinho, eram consideradas barragens seguras.

Como funcionam esses parâmetros?

Pela lei, a empresa descreve a barragem, identificando dois problemas. O primeiro é o vício estrutural, se há chance de romper ou não. No caso das barragens de rejeitos de minério, esse é um cálculo que não te dá muita segurança. Porque o maciço da barragem é feito da própria lama, do próprio rejeito. Então, se não houver um monitoramento super-rigoroso pode haver problema.

E o segundo parâmetro?

O empreendedor, ao descrever a barragem, deve apontar o dano potencial. Mesmo se a barragem tem uma estrutura sólida, se acontecer uma tragédia é preciso identificar os danos potenciais. Ou seja, se tem muita gente morando na região, o nível de contaminação dos rios, dos solos. O impacto socioambiental. Tanto no caso do Fundão quanto do Córrego do Feijão, o risco estrutural era baixo, mas o dano potencial alto.

Quem monitora isso?

São as próprias mineradoras que monitoram. A lei de segurança exige que a própria mineradora, ou um auditor contratado pela mineradora, faça uma análise e declare aos órgãos ambientais que a barragem está estável. Em geral, as empresas contratam um auditor externo para fazer isso.

Mas esses auditores externos não são confiáveis?

Sim, mas, em geral, eles fazem os cálculos com base em dados de monitoramento fornecidos pela própria empresa. Qual a falha desse processo? Pode ter dados que são filtrados. Nem todos os dados foram repassados aos auditores no caso da Samarco, por exemplo. Um outro aspecto é o histórico de problema da barragem. No caso da barragem do Fundão, quando conversamos com os técnicos, com os geotécnicos, a conclusão é que ela nunca poderia ter sido declarada segura, todo ano ela apresentava algum problema. Em 2014, por exemplo, houve uma pré-ruptura que não foi comunicada aos auditores.

Por isso o senhor usou a metáfora da raposa tomando conta do galinheiro….

Sim, não é uma metáfora muito original, mas é muito pertinente. Quando indagamos ao auditor, no caso da Samarco, se ele teria liberado a barragem caso tivesse acesso a todo o histórico, ele respondeu que nunca teria atestado baixo risco. Mas ele não teve acesso simplesmente porque não faz parte do protocolo.

E o que vocês fizeram? 

Apontamos o problema em 2016, mas nada foi feito para mudar o protocolo.

O que poderia ser feito?

É como o Imposto de Renda. Você entrega a sua declaração, mas a Receita Federal analisa se tem algum erro, se tem uma omissão. O Estado brasileiro tinha que fazer isso. Um fiscal tinha que ir até a barragem, analisar o histórico da barragem, olhar o local, identificar os problemas em potencial. Isso era assim na tragédia de Mariana e nada mudou. Eram apenas dois técnicos em Minas Gerais com a função, não exclusiva, de fiscalizar as barragens. São mais de 300 barragens em Minas (são 324, de acordo com a Agência Nacional de Mineração). Então eles faziam uma fiscalização por amostragem, uma vistoria superficial e confiavam na informação que a empresa repassava.

E essa estrutura se manteve igual a despeito da tragédia de Mariana?

Sim. Erramos em 2015, certo, mas podíamos ter modificado os protocolos, os procedimentos, fazer alguma coisa. Mas nada foi feito, não houve nenhuma modificação. Esses dois engenheiros, que nem têm uma formação específica em segurança de barragens, continuam lá. Ah, tem uma secretária também. Isso é tudo que eles têm, três pessoas. (Segundo a Agência Nacional de Mineração, atualmente existem cinco funcionários em Minas).

Todas as propostas de leis mais rígidas também foram barradas….

Sim, tenho batido muito nas empresas. Mas resolvi botar o dedo na ferida. Se o Estado continuar fazendo vista grossa, vamos ter outros casos. Assim que aconteceu o rompimento (de Fundão), a Câmara dos Deputados criou uma comissão parlamentar de barragens. Estive lá várias vezes. A comissão apresentou uma série de projetos de lei para assegurar a segurança das barragens. Foram todos arquivados.  Em Minas aconteceu a mesma coisa. Todas as propostas que visavam dar garantias às barragens também foram arquivadas.

Qual a explicação para isso?

Provavelmente um lobby muito forte das empresas. E essa inércia do Estado.

Falta dinheiro para ter uma estrutura melhor?

Pois é. Não falta dinheiro. Os royalties da mineração, que deveriam ser usados para estruturar a Agência Nacional de Mineração ,têm sido sempre contingenciados. Não são usados para a finalidade que a lei determina. E é uma parcela significativa de recursos, que ajudaria muito. Não poderia ser usado para contratação, mas para criar uma estrutura, para compra de equipamentos mais sofisticados. Mas esses royalties têm sido usados para reduzir o déficit das contas do governo. Todo ano é contingenciado. E isso não é de hoje, tem uns 15 anos já.

Até hoje ninguém foi punido pelo desastre de Mariana, essa lentidão da Justiça também não é um problema?

Sim. A ação penal continua tramitando, mas o sistema de Justiça tem de se aperfeiçoar, tem de ser capaz de dar uma resposta mais pronta. Ajuizamos essa ação penal há dois anos, ela tramita numa velocidade incompreensível. Eu diria que o Judiciário ainda não tem o costume de lidar com danos ambientais de magnitude como essa. A resposta é muito lenta.

Como assim? 

A Justiça está acostumada a lidar com pequenos crimes ambientais, mas para grandes crimes, em que há complexidade nas provas, na identificação das responsabilidades, não avançamos. Por exemplo, avançamos na questão da lavagem de dinheiro, nos crimes do colarinho branco. Antigamente, não conseguíamos dar uma resposta adequada a esses crimes. Hoje, temos uma agilidade maior. Mesma coisa acontece na área ambiental.

O Greenpeace propôs que todas as barragens de rejeitos de minérios tivessem sua operação suspensa até que sua segurança fosse atestada. Isso é viável?

Essa hipótese não está descartada, o problema é como conseguir fazer isso. A medida mais pura, sem dúvida, seria paralisar todas as barragens. Mas quem iria cuidar disso? Porque não bastaria suspender a operação, seria preciso descomissionar as barragens (ou seja, desmontá-la, retirando todos os resíduos). Isso tudo tem um custo alto, que pode impactar a economia. Mas o ideal seria isso, suspender as operações, descomissionar as barragens e adotar outros métodos de lidar com os rejeitos.

Já existem vários outros métodos, não?  

Sim. Essa barragem a montante é a mais insegura que existe. E também a mais barata. Mas há outros métodos mais seguros. A própria Vale já usa no Pará, uma técnica de empilhamento a seco de resíduos. Essa técnica tem danos ambientais? Tem. Mas os riscos associados são muito menores. E, claro, é uma operação muito mais onerosa.

Qual a saída mais factível nesse momento?

Uma força-tarefa, entre o sistema de Justiça, as universidades, para fazer uma grande inspeção das barragens de rejeitos que utilizam esse sistema.

Do Estadão