Ao nomear Secretário defensor da ditadura, Moro mostra quem realmente é
“Não houve ditadura militar no Brasil”. A afirmação já seria grave, não fosse dita pelo atual responsável pela política de segurança pública no Brasil, o titular da Secretaria Nacional da Segurança Pública, ligada ao Ministério da Justiça, Guilherme Theóphilo. A pasta representa a mais alta instituição do governo de Jair Bolsonaro relacionada ao tema da segurança.
Com 45 anos no Exército, o general de quatro estrelas foi comandante militar da Amazônia, comandante de logística e atuou na missão de paz no Haiti. Passou para a reserva em 2018 e se filiou ao PSDB para disputar as eleições ao governo do Ceará. Depois de perder a eleição ainda no primeiro turno com pouco mais de 11% dos votos, se desfiliou do partido.
Em entrevista ao jornal cearense O Povo em 20 de agosto de 2018, o então candidato tucano ao governo do Ceará negou que o que ocorreu em 1964 tenha sido um golpe militar.
“Primeiro, não é golpe, chama-se contragolpe democrático de 64. Estava à beira de ter um golpe através do senhor João Goulart, que levaria o nosso país ao socialismo. Esse era o golpe que ia ser dado. Estava tudo caminhando para isso, o Che Guevara tinha recebido uma medalha de honra que poucos recebem, a Ordem do Rio Branco… Então um herói cearense, chamado Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, liderou um contragolpe democrático que levou o país a corrigir toda essa estrutura comunista que estava sendo implantada”.
Na entrevista, Theóphilo coloca em dúvida o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e legitima a instauração de um regime de exceção no Brasil, como forma de devolver a suposta ordem ao país: “O Brasil precisava de um regime de exceção. Não é ditadura. Não houve ditadura no Brasil. Um regime de exceção é um regime forte”.
O presidente da Comissão Nacional da Verdade, o jurista Pedro Dallari, afirmou ao Brasil de Fato que o “argumento do contragolpe foi adotado em toda região para tentar justificar a ruptura da ordem democrática. Mas essa tentativa de explicação não encontra respaldo na história”.
Segundo Dallari, qualquer tentativa de minimizar a gravidade dos crimes cometidos pela ditadura, comparando à resistência ao regime militar, significa negar o inegável.
“A Comissão Nacional da Verdade, cumprindo mandato legal, comprovou com farta documentação a prática de tortura por agentes da repressão política. Estes, nunca responderam por seus crimes. Ao contrário dos acusados da combater a ditadura, que foram submetidos à Justiça Militar e cumpriram pena. Mas muitos, nem essa chance tiveram, pois foram mortos sem direito a qualquer tipo de julgamento”.
Cecília Coimbra, membro do Grupo Tortura Nunca Mais, disse que as declarações de Theóphilo remetem a um passado sombrio: “Eu acho um absurdo esse tipo de argumento ainda acontecer no Brasil. Eu acho um retrocesso imenso. Estou ouvindo as mesmas coisas que eu ouvi há 50 anos atrás. Eu sei o que é tortura. Eu tive durante três meses e meio, no ápice da ditadura, em 1970, governo Médici, o governo que mais torturou em toda a história da República no Brasil. Eu vi e vivi, e senti na minha própria carne, e na minha própria pele, e no meu coração, os horrores da tortura”.
Em 2014, a CNV emitiu seu relatório final e confirmou a ocorrência de violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988. Ao todo foram identificadas 434 vítimas diretas da ditadura, entre mortos e desaparecidos.
Embora a Segurança Pública seja uma atribuição dos governos estaduais, a Secretaria Nacional é responsável por coordenar a política nacional de segurança e definir padrões de operação para as polícias. O órgão também é responsável pela Força Nacional.
Segundo o portal do Ministério da Justiça, comandado pelo ex-juiz de primeira instância, Sérgio Moro, entre as atribuições da secretaria estão “assessorar o Ministro de Estado na definição, implementação e acompanhamento da Política Nacional de Segurança Pública, planejar, acompanhar e avaliar a implementação de programas do Governo Federal para a área de segurança pública; elaborar propostas de legislação e regulamentação em assuntos de segurança pública; promover a integração dos órgãos de segurança pública, exercer as funções de Ouvidor-Geral das Polícias Federais; promover e coordenar as reuniões do Conselho Nacional de Segurança Pública e coordenar as atividades da Força Nacional de Segurança Pública”, entre outras.
“Esse é um fascista”, afirmou ao Brasil de Fato em off uma fonte que trabalhou no Ministério da Defesa. Segundo analisa a fonte, que não quer ser identificada, o papel de Theóphilo na Secretaria Nacional de Segurança Pública será fazer a ligação entre os serviços de inteligência e o ministério da Justiça, consolidando assim o “estado policial”, capaz de exercer o controle social através da repressão.
“Ele é a personificação do estado policial. É a ligação entre o Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e o Sérgio Moro (Ministério Justiça). Isso é muito perigoso”, alertou.
A ditadura militar brasileira teve início em 1º de abril de 1964, após o golpe sofrido pelo presidente democrático João Goulart. A criação do Ato Institucional nº 2 (AI-2) extinguiu os partidos políticos, suspendeu direitos políticos e cidadãos o direito de votar ou ser votado em eleições sindicais, a proibição de atividade ou manifestação sobre assunto de natureza política. Em 1966, o Congresso Nacional foi fechado pela primeira vez. Em 1968, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) voltou a fechar o legislativo nacional, oficializou a censura e suspendeu a liberdade de imprensa e de expressão.
Divulgado no final de 2014 e com ampla repercussão na imprensa, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade apontou violações de direitos, resultado “de ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro”, vitimando centenas de pessoas.
Organismos internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) reconhecem a chegada ao poder dos militares em 1964 como um “golpe militar”, que inaugurou um período no qual se “restringiu as liberdades individuais” dos cidadãos.
Em março de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial autônomo responsável pela aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos, condenou o Estado brasileiro devido à falta de investigação e julgamento com responsabilização pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, morto na sede do DOI/Codi, em São Paulo, em 1975.
Para o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humanos (Condepe) de São Paulo, a postura do secretário representa “uma verdadeira apologia aos assassinatos, torturas e abusos de autoridade cometidos durante a Ditadura Militar”.
“Isso prova a péssima índole desse governo. Essa conduta e afirmações são inapropriadas para quem exerce um cargo de secretário nacional de segurança pública. Ele estará então instruindo os membros da força nacional de segurança a matar, torturar e desaparecer com pessoas?”, questionou.
Já a ex-ministra da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, a deputada Maria do Rosário, criticou as declarações de Theóphilo e afirmou que a impunidade aos crimes da ditadura abriu caminho ao retorno das “forças obscuras” ao poder.
“Aqueles que fizeram apologia à tortura voltaram à cena no Brasil, com Jair Bolsonaro na Presidência. Mas nós, que somos o povo brasileiro e que lutamos pela democracia e que não relativizamos os golpes, temos que desmascará-los e continuar lutando por um Brasil onde exista memória, verdade e justiça. E justiça só vai haver quando estes que fazem pouco caso do período ditatorial disserem onde estão os corpos dos mortos e desaparecidos que foram assassinados por eles”.