Livros didáticos de história não justificam as alegações do Escola sem Partido

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Leia a coluna de Marcelo Coelho, membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

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Afinal, cadê a doutrinação comunista?

Andei vendo alguns livros didáticos de história, publicados em 2015, 2017 e 2018.

Ainda que eu considere assustadoras as intenções de quem defende o Escola sem Partido, tinha alguma desconfiança de que a bibliografia corrente fosse meio desequilibrada com relação, por exemplo, a Cuba ou ao governo João Goulart.

Sem dúvida, o autoritarismo de Fidel Castro e seus companheiros é habitualmente minimizado pela esquerda, e não sou cego a ponto de negar que professores de humanidades, em geral, educaram-se sob a influência de Marx.

No que estão certíssimos, afinal. Mesmo a direita teria dificuldades em entender a história mundial sem considerar os conflitos de interesse entre assalariados e detentores dos meios de produção.

Mas não era irrazoável supor que parte do ensino de história no primeiro e segundo graus sofresse de alguma parcialidade factual.

Não foi isso o que eu encontrei nos livros consultados. Vêm de editoras de grande porte, como a Moderna e a Ática, sendo de imaginar que tenham alta circulação.

Revolução Cubana? Eis o que diz um livro de “autoria coletiva” (será isso comunismo?) publicado em 2018.

“O regime socialista adotado em Cuba universalizou o ensino, reduziu a mortalidade infantil e o desemprego. O acesso à moradia e à saúde pública foi incrementado. A indústria, contudo, não foi incrementada.”

Segundo parágrafo. “No terreno político foi implantado um regime nos moldes soviéticos, caracterizado pela ditadura de um partido único (o Partido Comunista), pela supressão das liberdades democráticas e pela perseguição aos opositores do regime.”

Há um box favorável ao programa Mais Médicos; mas é loucura dizer que esse texto, algo impessoal e burocrático, tenha viés doutrinário.

Vamos tentar outro, da FTD. Narra-se o “golpe civil-militar” de 1964. “Eram contrários às reformas de base os grandes empresários, parte do alto clero e dos oficiais do Exército e organizações como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), ambas mantidas com dinheiro de empresários brasileiros e estadunidenses.” Verdade.

“As posições se radicalizavam” (será parcial esse relato?). “Os movimentos sociais exigiam as reformas de base que João Goulart havia prometido; a oposição acusava o presidente de ter perdido a autoridade e de ser cúmplice do comunismo internacional.”

Note-se que nem a expressão “comunismo internacional” foi colocada ironicamente entre aspas no texto.

“Sem o apoio do Parlamento, Goulart optou por se aproximar dos movimentos sociais. Em 13 de março, liderou um gigantesco comício pelas reformas de base […].”

O livro acrescenta que, seis dias depois, “autoridades civis e religiosas” organizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, “igualmente grande, (com) cerca de 300 mil pessoas”.

O estopim para a queda de Goulart não fica sem ser mencionado. O governo Goulart “não puniu” os marinheiros que promoviam manifestação no Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara nem os fuzileiros navais que se recusaram a reprimi-la.

“Oficiais das Forças Armadas consideraram essa atitude um incentivo à quebra da disciplina e da hierarquia militar.” O livro é de 2015, e sua neutralidade beira a indiferença.

Uma publicação da Ática, voltada para os séculos 20 e 21, conta a construção do Muro de Berlim. “A Alemanha Oriental, comunista, não tinha o mesmo desenvolvimento (da Alemanha Ocidental) e seu governo não respeitava as liberdades públicas.”

“Como resultado da falta de liberdade, muitas pessoas começaram a fugir da Alemanha comunista […]. Com o objetivo de impedir as fugas de seu território, o governo da Alemanha Oriental instalou cercas de arame farpado, campos minados, cães de guarda, torres de vigilância e muitos soldados ao longo de sua fronteira com a Alemanha Ocidental.”

Apologia do marxismo? Please…

Em geral, o texto desses livros poderia ser mais vivo e colorido, recorrendo a detalhes e episódios emocionantes, coisa que a história oferece sempre.

Mas falar em “doutrinação de esquerda” é puro delírio. Mesmo se fosse, o projeto de controlar a opinião de professores pela espionagem informal e por sanções legislativas é odioso.

Se há uma “guerra cultural” pela “hegemonia gramsciana” do “marxismo”, que os incomodados reajam pelo debate, com seus próprios livros e publicistas. Aliás, já fazem isso com sucesso. Reprimir é coisa de fanáticos; de golpistas; pior. Usarei o termo? De comunistas.

Da FSP