Pacote anticrime de Moro só tem um destino: a rejeição e o ostracismo
O pacote das 20 Medidas de Moro merece o mesmo destino daquele patrocinado pelo Ministério Público Federal, na primeira excursão da turma da Lava Jato ao Legislativo: a rejeição e o ostracismo.
Pouco apurado tecnicamente, com ênfase na conquista da opinião pública e capaz de causar muito mais problemas do que aqueles que pretende resolver. Quanto mais as pessoas começam a ler, mais as críticas têm dominado o ambiente jurídico.
A lembrança das 10 Medidas não é despropositada: a corrupção e o crime organizado funcionam mais uma vez como pretexto para a formatação de um instrumento de estado policial a bordo de um populismo rasteiro.
Não à toa, Moro advertiu, logo no primeiro dia, que o pacote não era dirigido para professores de processo penal. O programa foi divulgado para que fosse acolhido justamente por quem não conhece o direito. Afinal de contas, como tem sido recorrente na moderna filosofia de governo, o saber é apontado como um insidioso inimigo.
O projeto de Moro não é exatamente aquilo que diz ser: anticrime. Ele é antidireito, e sobretudo, uma elegia à morte. Ele não traz soluções, mascara problemas e contém uma aposta irresponsável na violência como mecanismo de inibição da criminalidade.
A força substitui, em quase todos os momentos, a racionalidade.
Quando o pacote menciona “medidas para evitar a prescrição”, por exemplo, era de se supor que pretendesse inovar em algum tipo de mecanismo para agilizar a investigação policial ou fiscalizar mais acuradamente o trabalho de promotores e juízes. Mas para a gramática da nova era, “evitar a prescrição” quer dizer simplesmente dificultar que ela seja declarada.
Algo como tentar eliminar a febre, impondo que ela só seja reconhecida quando a temperatura do corpo passar de 39º C. Os processos podem continuar se arrastando, o Estado apenas vai dar um tempo extra para que eles terminem.
Não é muito diferente da forma como encarou nosso maior débito, os homicídios. Não há qualquer estratégia no campo de investigação; nenhuma sofisticação de procedimentos policiais ou mesmo indicação de políticas públicas para resgatar o estrondoso volume de mortes não esclarecidas.
O que o pacote impõe é estender a legítima defesa. Criar um perdão judicial para o excesso doloso, quando alguém propositadamente exagera na reação e com isso causa uma morte. Aumentar para hipóteses subjetivas de “risco de confronto” a legitimidade da ação homicida de agentes públicos.
O resultado é certeiro: mais gente vai morrer, mas estas mortes “legalizadas” não mais engordarão as estatísticas.
É difícil entender por que ampliar a excludente de ilicitude para a ação policial. Qual o fundamento de política criminal que sustenta tal proposta? Qual a pesquisa estatística que aponta o excesso de responsabilização policial como um problema a ser resolvido?
Fomos proibidos de saber, porque o projeto oriundo deste Super Ministério não veio acompanhado de nenhuma justificativa sequer. Fosse um trabalho escolar, de começo de graduação em uma faculdade de Direito certamente não alcançaria nota para sua aprovação. “Mal-ajambrado”, como definiu Patrick Mariano, neste mesmo espaço, na semana que passou.
Surpreende o amadorismo no trabalho de um ministério em relação ao qual não foram poupados esforços para fortalecer e que conta com uma secretaria específica apenas para gerir os assuntos legislativos. Das duas uma: ou o projeto foi tornado público antes da hora, ou o ministro acredita piamente que será mais fácil aprová-lo sem maiores explicações, com uma ou outra entrevista, dentro da lógica “la garantia soy yo”.
O Brasil é um dos países com maior índice de violência policial contra civis, se não estiver isolado na dianteira. Jovens negros da periferia são as vítimas preferenciais. Por outro lado, é insignificante o volume de policiais processados e condenados por homicídios nestas situações.
O livro Indignos de vida, do delegado de polícia Orlando Zaccone, é fruto de extensa pesquisa sobre homicídios policiais no Estado do Rio de Janeiro. O que ele revela é que os promotores de Justiça, normalmente tão sedentos de repressão e penalmente severos, pedem arquivamento generalizadamente com base em legítima defesa, sem exigir praticamente nenhum tipo de prova.
Por que então aumentar ainda mais as possibilidades de homicídio policial sem responsabilidade penal? Que necessidade o projeto visa satisfazer ao antecipar a excludente para prevenir “risco de confronto”? A proposta não é apenas uma “licença para matar”, o que já seria por si só escabroso. É um estímulo. Uma confiança no poder da morte como forma de combater a criminalidade.
E se a explicação para a maior parte das violências policiais reside em supostas resistências, o projeto foi adiante. Não para acabar de uma vez por todas com os chamados “autos de resistência” (tapete por baixo do qual muitos homicídios policiais foram varridos ao longo dos anos) ou estabelecer mecanismos mais rígidos para a prova das prisões em flagrante, como, por exemplo, a obrigatoriedade de sua filmagem.
Mas simplesmente para fixar uma pena enorme, de seis a 30 anos de reclusão, ao ocorrer “risco de morte” derivado da resistência. A permissividade de uma interpretação aberta de agravamento pelo resultado, o que não se pode afastar de um Judiciário com sangue nos olhos, é um perigo ainda maior que se agrega.
Enfim, como proposta de uma política de Estado, o estímulo oficial às mortes beira o crime contra a humanidade e é o caso de nos perguntarmos se, desde logo, não devem ser suscitadas representações junto aos mecanismos do sistema internacional de Direitos Humanos.
A expansão da legítima defesa também se dá com o perdão ao excesso doloso no homicídio, por medo, surpresa ou emoção, o que alcança também, mas não apenas, as forças policiais. Curiosamente, a regra é positivada logo em seguida à ampliação do acesso popular às armas de fogo, como se representasse uma espécie de convite ao faroeste.
A luta pela prisão em segundo grau é outro dos fetiches da Operação Lava Jato – a jurisprudência do STF mudou em 2016, muito influenciada pela ideia de que sem este mecanismo minguariam as delações premiadas e, com isso, o coração da operação ia parar de bater. Era preciso continuar intimidando.
A presença de uma proposta de alteração neste sentido visa proporcionar um fato consumado para evitar, enfim, que o STF possa se debruçar sobre a constitucionalidade do Art. 283, do CPP – que só excepciona a prisão antes do trânsito, nos casos em que há justificada necessidade cautelar.
A proposta de alterar este artigo é, no fundo, um reconhecimento de sua constitucionalidade. Se até Moro admite a necessidade de revogar a lei, fica mais fácil de compreender porque, afinal de contas, a decisão sobre a validade deste artigo tem sido continuamente evitada no Supremo, primeiro por Carmen Lúcia, que simplesmente se recusou a pautar as ações de controle constitucional que o discutiam, e depois, postergada, por Dias Toffoli, para, sabe-se lá a razão, a data de 10 de abril.
Verdade seja dita, no entanto, há uma certa coerência no projeto, quanto ao desprezo das decisões do STF, como se dá no prestígio incondicional às audiências por videoconferência, na previsão da execução provisória da pena restritiva de direitos e da conexão nos casos de foro privilegiado.
Ademais, o projeto volta a insistir no esvaziamento do sistema progressivo do cumprimento de pena – vulgarizando o regime fechado para inúmeras situações, aumentando prazos de progressão, ressuscitando o exame criminológico (que chegou a ser o maior entrave prático à progressão, pela demora nos laudos) e criando, ainda, uma espécie de pedágio a ser fixado pelo juiz no regime inicial, que pode reduzir a pó a progressão na prática.
Tudo isso para esvaziar a decisão de 2006, pela qual o STF entendeu inconstitucional a proibição de progressão de regime.
Moro parte, assim, para colocar o STF nas cordas, contando que o resultado dessa luta se dará pelo sucesso de público e não o de crítica.
A despeito de já sermos a terceira maior população prisional do mundo, parte considerável em presídios superlotados, Moro aposta em mais encarceramento. Reproduz a equivocada ideia da Lei dos Crimes Hediondos, de que tempos difíceis se resolvem com penas duras.
Não aprendeu com a experiência, porque a LCH, como se sabe, não teve impacto nenhum na redução da criminalidade. Ao revés, teve um efeito devastador no sistema carcerário. E, a partir disso, um repique violento com a criação das facções criminosas que exportaram o crime para fora das celas –no fim, foram as penas duras que transformaram os tempos em mais difíceis ainda.
Por falar em facções criminosas, aliás, dois grandes presentes que recebem do pacote.
Primeiro, o aumento do encarceramento que, como se sabe, tem como consequência imediata o recrutamento de novos braços ao crime organizado. Não é possível, a essa altura, que o ministro da Justiça e da Segurança Pública não tenha se informado acerca do extenso domínio dos presídios pelas facções –resultado, ademais, de políticas que, propositadamente ou não, uniram o enrijecimento do estado policial à redução do Estado social.
O conjunto de penas mais duras e ausência de recursos para a manutenção dos presídios, acaba por deixar as facções como gerentes do inferno. Encher ainda mais as combalidas prisões, por um governo que faz juras à austeridade, no contexto do teto constitucional de gastos, é jogar uma tocha de querosene na vã pretensão de apagar a fogueira.
Facções que, ademais, são eternizadas na lei, com menções explícitas a seus nomes como “exemplos” de organizações criminosas. Patético, para dizer o mínimo.
A incúria legislativa mostrou-se extremamente impactante em outros pontos também.
Não demorou um dia para que equívocos de redação começassem a ser corrigidos, o que expõe a absoluta falta de cuidado para com a apresentação do texto, além de desvelar a ausência de interlocutores que pudessem ter alertado acerca dos pontos mais sensíveis do projeto.
É possível encontrar no texto redações pueris e redundantes, como as “contrarrazões da parte contrária”; ilógicas, como a exigência de cumular o relevante com o não-protelatório, e pouco cuidado com os termos técnicos, como ao empregar a expressão “revisão de condenação” para tratar do resultado de um recurso.
A redação do conceito de organização criminosa, a princesa dos olhos do ministro, que supostamente deveria receber dele a maior atenção e cuidado, embute um enorme descuido. A confusão que cria com o inciso II é auto-explicativa:
“Considera-se organização criminosa a associação de 4 ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, e que (II) sejam de caráter transnacional”. Não há empresa no mundo, que tenha atuação em mais de um país, que escape desta definição.
O problema maior nem está nestes erros primários que serão, provavelmente, corrigidos dia-a-dia, mas na extrema dificuldade de manejo dos conceitos, vulnerando a racionalidade do sistema.
É o caso da reincidência que, na maioria das vezes, está equiparada a uma incerta habitualidade criminosa, que não tem forma jurídica e pode ser qualquer coisa, até mesmo resultado de inquéritos arquivados contra o réu, o que STJ e STF já proibiram como indicador de maior culpabilidade.
O projeto insere essa tal habitualidade a partir de “elementos probatórios que a indiquem” para estabelecer aumentos de pena e escolha de regimes. Mas não se pode aumentar uma pena apenas com base em “elementos que indiquem” condutas pretéritas. Decisões condenatórias devem ser preenchidas pela certeza, inclusive no tocante à pena.
O mesmo se pode dizer da expressão “insignificantes” utilizada em sua acepção vulgar, como se representassem apenas atos pequenos ou irrisórios, quando a natureza jurídica da insuficiência é de exclusão de tipicidade – ou seja, o que está fora e alheio ao Direito Penal.
A barafunda de conceitos e atecnias explica o alerta do próprio ministro antecipadamente contra os professores – de quem já supunha receber a avalanche de críticas que está apenas começando. A apresentação popularesca do projeto é, na verdade, um convite explícito à demagogia, na qual os especialistas obviamente não são bem-vindos, porque podem desvelar que na verdade mal se trata de um pacote, mas sim de um embrulho.
A prisão em segundo grau foi alçada em elemento de direito material para permitir o acréscimo de pena da mesma forma que a reincidência, esvaziando completamente o sentido do trânsito em julgado. Fica uma pergunta no ar: se é para aumentar a pena de quem já sofreu condenação não definitiva, o que fazer se, posteriormente à sentença, ocorrer a absolvição do réu naquele primeiro processo? Vamos devolver um pedaço de liberdade a ele?
O projeto autoriza uma esquisita condição para evitar a prisão automática em segundo grau: quando o acordão que condena ou mantém a condenação reconhece que existe plausibilidade em questões constitucionais ou legais, a ponto de supor que sua própria decisão seja reformada em tribunais superiores.
A ideia é um absoluto contrassenso: deixar à consideração da turma julgadora reconhecer que, apesar da decisão que está tomando, é bem possível que ela seja reformada em Brasília. Seria, então, o caso de se perguntar a quem entende plausível a reforma, por que então já não a elabora a decisão neste mesmo sentido?
É uma explosão de contrariedade a uma lógica que foi recentemente valorizada no novo Código de Processo Civil, largamente discutida pelos professores que, então, não foram desconvidados da festa. Trata-se do respeito aos precedentes. Ignorá-los avoluma enormemente a Justiça e o projeto apenas estimula o ato, com uma fórmula subjetiva que beira o absurdo.
Para cumprir esse nonsense era mais fácil simplesmente dizer que não se executa prisão em segundo grau de decisão que contrarie precedente superior. Isso sim poderia minimizar a agressão que se tem feito à presunção de inocência.
Há, por fim, um grosseiro equívoco no que respeita a extensão da prisão em segundo grau para as decisões do Tribunal do Júri. Júri é tribunal apenas no nome, por uma questão de tradicionalismo. Trata-se de decisão de primeiro grau como todas as demais sentenças de juízes singulares.
A medida não visa, como declara, “dar efetividade às decisões do Tribunal do Júri”, mas amputar a presunção de inocência pura e simplesmente. Mesmo que o Júri seja soberano, há uma série de questões que podem ser revistas pelo Tribunal de Justiça (aí sim, em decisão de segundo grau) como o reconhecimento de nulidades, a decisão contra as provas dos autos e a aplicação da pena.
Dar “efetividade” não é executar desde logo uma decisão que pode mudar. Não há absolutamente nada de “efetivo” em cumprir antecipadamente uma pena que pode ser revista, anulada ou reformada. É apenas imprudente. E, muitas vezes, sádico.
Mas a “efetividade” a que se refere o ministro é quase sempre sinônimo de subtração de direitos.
Amputam-se recursos, aumentam-se presunções contra o réu (como no caso do perdimento de bens), criam-se obstáculos para a defesa – até mesmo restringindo o contato do advogado com seus clientes.
Por fim, o pacote de projetos aposta todas as fichas no plea bargain, justiça negocial, como forma de impulsionar o encarceramento aliado à redução abrupta de processos. Ou seja, produzir muitos presos com poucos julgamentos. Está aí, talvez, a melhor descrição de efetividade.
A ideia esdrúxula é importar o exemplo norte-americano que culminou com nada menos do que 2,5 milhões de presos. De fato, não é uma grande credencial para apresentar a professores de processo penal; mas na nova era, tudo o que é bom para os Estados Unidos certamente deve ser ótimo para o Brasil.
Naquele país, o sistema representou um enorme acúmulo de poder nas mãos do Ministério Público, que passou a ser a instituição mais importante do sistema penal, com características que em nada ajudam a democracia: maior discricionariedade, menor controle. Curiosamente, essa é talvez a regra que maior chance tem de ser reformatada, em face de uma colisão de disputas institucionais, ou quem sabe apenas corporativas: os juízes não querem ficar à reboque dos promotores.
O ministro da Justiça pouco tem a apresentar para aumentar a capacidade investigativa dos órgãos de segurança pública (neste caso, apenas e tão-somente a colheita indiscriminada de material genético de réus), e nada para alavancar a inteligência policial. Lança seus dados no endurecimento penal, no estímulo ao homicídio policial e na compressão de direitos.
O pacote é demagogia em estado puro, mas suas consequências podem ser tenebrosas. Tende a produzir muitos presos e muitos mortos. Mas os cárceres superlotados e os cadáveres amontoados em nada vão reduzir a criminalidade.
Da Cult