Porão usado durante ditadura militar ainda tem manchas de sangue

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“Vamos conhecer a sala de massagem com aconselhamento e reflexão?”. É assim, em tom de ironia, que o artesão Antonio Carlos de Oliveira convida quem entra na sua loja na Central de Artesanato Mestre Dezinho, em Teresina, para conhecer o porão que abrigou presos políticos durante a ditadura militar.

É ali, no box 43, abaixo do ateliê de Carlos Oliveira, que permanecem as marcas de sangue e de uma época tortuosa, sombria e amarga instalada após o golpe militar de 1964, que completa 50 anos.

A grade já enferrujada e que dá acesso ao calabouço fica logo na entrada do ateliê. Quem ousa pisar no gradeado logo é repreendido pelo artesão: “Você sabia que está pisando em uma parte da nossa história”? É a partir desse alerta, e com a experiência de quem sentiu na pela a força da censura que perdurou por duas décadas no país, que Carlos Oliveira reconta a história da sala de tortura.

“Na época os militares diziam que aqui era um local onde eles guardavam as armas e também onde os coturnos (bota de uso militar) eram consertados. Como que iam guardar armas em um local quente e úmido como esse? Isso aqui foi uma sala de tortura física e psicológica e muitas pessoas foram covardemente violentadas”, conta.

Basta entrar no local e não é muito difícil imaginar o que os presos passavam. Os dez lances da escada são estreitos e, segundo Carlos, muitas pessoas eram jogadas antes mesmo de terminar a descida ao porão. Sem janelas, a sala é quente e em alguns minutos dá pra ficar sufocado. Em meio às manchas dos cupins ainda é possível ver manchas de sangue nas paredes. Dois parafusos, onde supostamente ficavam os presos algemados, também permanecem no local.

No espaço, que hoje é a maior vitrine do artesanato piauiense, funcionou o quartel da Polícia Militar durante os anos de chumbo. O local, que é bastante visitado por estudantes e historiadores, recebeu a visita da Comissão da Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça em agosto de 2001 para analisar os pedidos de indenização formulados por pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política durante a ditadura.

Um dos presos pelo regime militar foi o jornalista piauiense Benoni Alencar, líder estudantil na época e que foi mandado para o Rio de Janeiro, onde passou a morar. No dia 7 de fevereiro de 1995, quase 30 anos após a sua prisão, ele retornou ao Piauí somente para visitar o calabouço. A data e assinatura do jornalista foram registradas em um caderno que o artesão Carlos Oliveira mantém guardado em meio às esculturas e material de pintura no ateliê.

“Vi aquela pessoa chegar gritando que voltaria um dia ali e fiquei curioso. Ele entrou e conversamos das 8h às 16h. Ele me contou tudo que passara aqui e depois voltou para o Rio. Só queria cumprir o que havia prometido: que voltaria a esse local”, relembra. Benoni Alencar morreu no dia 27 de setembro de 2011.

No porão, não há nenhuma placa e para o artesão ninguém tem interesse em preservar um local que é uma vergonha para a história. “Aqui é um símbolo da repressão, da época em que para descentralizar as lideranças e também os pensamentos eles mantinham as pessoas presas ou mandavam para outro estado”.

A família do artesão Carlos Oliveira morava em Campo Maior e em 1964, ano do golpe militar, veio para Teresina após a prisão de um familiar. “Naquela época a família já ficava assustada e quando isso acontecia iam embora. Foi o que aconteceu com a minha. Cheguei à capital com 8 anos e lembro que vivíamos com medo de tudo”, relembra.

Em 1978, já na fase adulta, Carlos Oliveira foi eleito presidente da Cooperativa de Artesãos e durante a sua posse fez um discurso que parece não ter agradado. À noite, quando estava na porta da casa da namorada, na Rua Manoel Domingues, Centro da capital, foi atingido com várias balas de festim após um caminhão misterioso passar pelo local.

“Inocentemente eu fui até a delegacia para me queixar e os policiais quase nem olharam para mim. O delegado perguntou se eu tinha falado demais e eu disse que tinha feito um discurso durante a minha posse. Me mandou ir embora e disse que era besteira”, conta.

O ataque contra o artesão foi manchete no extinto jornal O Estado que trouxe em letras garrafais a seguinte chamada: ‘Artesão é fuzilado na porta da casa da namorada’.

Por ironia do destino, Carlos Oliveira se instalou exatamente em uma das salas e mesmo sabendo que o calabouço é a marca de uma página negra da história faz questão de preservar e contar para os seus visitantes o que se passou ali.

O historiador e professor da Universidade Federal do Piauí Fonseca Neto disse que não há registro exato do número de pessoas que foram torturadas e mantidas no calabouço do antigo quartel da PM. Ele conta ainda que o local foi por muito tempo alvo de especulações e que muitas pessoas chegaram a acreditar que por lá passava um túnel que levava até o Palácio de Karnak, casa oficial do governo.

“No entanto isso nunca foi comprovado. Hoje o que temos são publicações com relatos de presos políticos e que resolveram colocar em livros as suas memórias da época da ditadura militar”, disse.

Do G1