Suspeitas de fraudes e ministro da Saúde põem em risco vidas indígenas
Onze indígenas reuniram-se na quinta-feira 9 com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para reclamar de mortes ocorridas na comunidade deles, em Roraima, por falta de atendimento médico. Houve choro na sala. Não de Mandetta, deputado conservador que praticou seu esporte favorito no momento: condenar o gasto público com a saúde dos povos tradicionais.
O sonho do ministro é fechar a Secretaria de Saúde Indígena, criada em 2010. Ele diz que há muita corrupção na chamada Sesai, dona de 1,3 bilhão de reais por ano. De fato, fraude parece não faltar ali. Uma história que põe em risco a vida de indígenas. Resvala perigosamente na escolhida por Mandetta para comandar a Sesai. E tem lugar de honra para o presidente do MDB, Romero Jucá.
A Polícia Federal (PF) requereu à Sesai nos últimos dias cópias de 15 contratos. Abriu inquérito após receber uma denúncia de desvio de verbas. Uma das citadas pelo denunciante como participante de falcatruas é Verbena Lúcia Melo Gonçalves. Funcionária pública licenciada, Verbena foi chefe de gabinete da secretaria de 2011 a 2016. E voltará a ser, se depender da nova secretária, Silvia Nobre Waiãpi.
Empossada em 24 de abril, Silvia mandou o nome de Verbena à Casa Civil da Presidência, para análise. No inquérito em curso, a PF talvez comprove algo dito por quem conhece a Sesai por dentro. Verbena teria sido capturada no passado por interesses escusos. E teria se aproximado de Silvia para dar-lhe apoio político em troca de que tudo fique como está.
Em 3 de maio, Verbena foi com Silvia ao Pará visitar uma unidade de saúde para indígenas. Viajou sem ter sido nomeada e, segundo o ministério da Saúde, teve as despesas pagas por uma entidade privada, o Instituto Espinhaço. Ali, Silvia cobrou os indígenas por problemas de gestão e financeiros. Ouviu que o governo em Brasília tinha culpa também. Verbena foi apontada com o dedo pelo acusador.
Durante a viagem, Silvia autorizou, à distância, pagar 4,9 milhões a uma empresa que tinha cobrado a Sesai por transporte aéreo. Em regiões isoladas como a Amazônia, não é raro um paciente ser levado de avião e helicóptero. A cobrança partiu da Voare Táxi Aéreo, por um trabalho no distrito sanitário dos Yanomami, na divisa de Roraima com o Amazonas.
O contrato da Voare com a Sesai estava vencido, mas a empresa diz ter trabalhado de 10 de janeiro a 31 de março de 2019, razão da fatura enviada à administração do distrito, que por sua vez teve de prestar contas a Brasília. No ministério, o diretor do Departamento de Gestão da Saúde Indígena, Marcelo Alves Miranda, era contra pagar. Botou isso em um ofício enviado a Silvia em 26 de abril.
Silvia reconheceu os problemas, como o valor da hora de vôo cobrada pela Voare, de 2 mil reais —na vigência do contrato, custava 1,8 mil. Em nota a CartaCapital, o ministério diz haver um parecer de 16 de abril da Advocacia Geral da União (AGU) que respaldou o pagamento autorizado por Silvia.
A Voare é citada em outra denúncia de irregularidades no distrito sanitário Yanomami, que possui administração local e reporta-se à Sesai em Brasília. Um dos citados é o ex-senador Romero Jucá, ex-chefe da Funai nos anos 80 que sabe muito dos intestinos federais na área indígena. Essa queixa, feita em 8 de outubro do ano passado ao Tribunal de Contas da União, levou o tribunal a ordenar, no mês seguinte, uma auditoria em contratos de transporte aéreo da Sesai. O material foi enviado à PF e ao Ministério Público.
Segundo o denunciante, cujo nome é mantido em segredo, o distrito contrata transporte aéreo sem licitação e aeronaves em mau estado. Põe os aviões a serviço de garimpos, para levar trabalhadores e mantimentos. E trata os garimpeiros nos locais de saúde indígenas, um risco à vida dos nativos, sem imunidade para enfrentar doenças trazida pelos “brancos”. Também pagou por um helicóptero sem necessidade (em áreas não isoladas, o avião resolve).
Tudo foi feito, diz a denúncia, com o conhecimento e a benção do diretor do distrito sanitário Yanomami, Rousicler Jesus de Oliveira, que tinha casa com poço de água cavado enquanto falta água para indígenas. Em Brasília, comenta-se que Rousicler é um apadrinhado de Jucá. Mas o ex-senador, via assessoria de imprensa, nega tê-lo indicado.
É a repetição, segundo o denunciante, de um velho esquema com transporte aéreo em saúde indígena descoberto em Roraima e que terminou a prisões durante a Operação Metástase, em 2007. Na época não havia Sesai: a saúde indígena era obrigação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O chefe da Funasa em Roraima era um indicado de Jucá, Ramiro Teixeira e Silva. Foi um dos 32 presos.
Um exemplo de irregularidade mencionada na denúncia ao TCU é de 14 de agosto de 2018. Como publicado no Diário Oficial da União, Oliveira autorizou contratar sem licitação a Icarai Turismo Táxi Aéreo. Motivo: necessidade emergencial no distrito sanitário Yanomami. Valor a ser pago à empresa: 6,3 milhões de reais.
A Icaraí tem sede em Araucária, cidade do Paraná. Foi aberta em 1992. No papel, seus sócios e administradores são Rodrigo Martins Mello e Paulo Brittes Martins. Fora do papel, pertenceria aos empresários Hissam Hussein Dehaini e Rihad Hissam Dehaini, segundo a denúncia ao TCU. Hissam foi um dos presos na Operação Metástase, há 12 anos.
Uma das origens daquela operação foi uma investigação sobre o envolvimento de Hissam com tráfico de drogas. Em 2000, o empresário foi preso durante uma diligência em Araucária feita pela CPI do Narcotráfico que acontecia no Congresso. Será que o transporte aéreo que deveria ser usado para tratar indígenas doentes se presta a levar drogas?
A Icaraí, sediada no Paraná, tem algo em comum com aquela empresa que Silvia Nobre mandou pagar recentemente, a Voare, sediada em Boa Vista, a capital de Roraima. As duas empresas atualizaram pela última vez seus dados cadastrais perante a Receita Federal no mesmo dia: 3 de novembro de 2005.
É a mesma data da última atualização feita por outra empresa de táxi aéreo, a Seta Norte. Esta empresa é do Amazonas, onde há uma parte territorial do distrito sanitário Yanomami. Pertence a Milton Carlos Veloso, um piloto. Veloso foi funcionário de Jucá no Senado e no escritório político do emedebista em Roraima. Costumava pilotar aviões usados pelo ex-senador.
Segundo uma notícia de 2012, Veloso e Jucá aproximaram-se em 2006. Ano posterior aos últimos arranjos cadastrais de Icaraí, Voare e Seta Norte. E anterior ao estouro da Operação Metástase. Não surpreende que, em Roraima e em Brasília, muita gente diga que o verdadeiro dono dessas empresas seria Jucá, ocultado por laranjas. “O ex-senador não tem empresa. Somente agora tem uma consultoria, após o término do mandato”, diz a assessoria de imprensa do emedebista.
Em maio de 2016, Neudo Campos, ex-governador de Roraima, entregou-se à polícia, para cumprir pena por corrupção no escândalo conhecido como “gafanhotos”, e declarou que Jucá era dono de um jato de uma outra empresa de táxi aéreo, a Rico. “Ele é tão vaidoso que até o prefixo do avião é PRJ. Esse jatinho está alugado para a Rico Táxi Aéreo, que aluga eventualmente lá para o governo do estado do Amazonas. Tem jato, tá riquíssimo, Romero Jucá é a maior fortuna do estado de Roraima. E ganhou isso de onde? Do erário público. E nas vistas de todo mundo.”
No papel, a Rico tem como sócios administradores os irmãos Átila e Metin Yurtsever. A exemplo de Icaraí, Seta Norte e Voare, foi em 2005 que atualizou pela última vez seus dados informados à Receita Federal, em 7 de maio.
A Voare tinha outro nome até 2017: Paramazonia. Mudou após uma sequência de notícias ruins. Um avião seu caiu e causou quatro mortes (piloto e três fiscais do Ibama). Um outro caiu em terra Yanomami com o piloto e um técnico em enfermagem. Ambos sobreviveram, mas um helicóptero da empresa foi resgatá-los e deixou cair no rio um deles, que desapareceu. O piloto do helicóptero era diretor da empresa e foi condenado logo em seguida por fraudes em contratos públicos.
A grana embolsada pelas empresas de táxi aéreo com serviços aos indígenas engordou desde a criação da Secretaria de Saúde Indígena, em 2010. A verba da Sesai saiu de 360 milhões em 2011 para 1,3 bilhão em 2019. Os dois maiores aumentos de um ano para o outro se deram justamente quando Jucá foi o relator do orçamento. Em 2013 (245 milhões a mais) e 2015 (300 milhões).
O ministro da Saúde acha que é dinheiro de mais e põe na mesa as suspeitas de corrupção como argumento. Para ele, os recursos deveriam ser dados às prefeituras, para elas tratarem dos indígenas. Mandetta propôs publicamente a municipalização em março, mas foi pressionado por movimentos indígenas e, por ora recuou.
Movimentos e especialistas não querem ouvir falar em municipalização. E nem no fim de um sistema de de saúde próprio para os indígenas. “A cidade é o lugar onde a gente sofre mais discriminação. Nossos povos são sempre os últimos nas filas [do SUS], diz Valéria Paye Pereira, uma das coordenadoras das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
“O governo fala que existe corrupção, mas nós também queremos saber se tem. A gente não está contente com a saúde indígena, na minha região há mais de um ano não tem profissional de saúde”, completa. Kaxuyana, a região dela, fica entre Amazonas e Pará.
A população indígena tem hoje cerca de 770 mil indivíduos, distribuídos por 5,3 mil aldeias e que falam umas 270 línguas. Talvez fossem mais, não houvesse tido 8,3 mil mortes entre eles por perseguição na ditadura, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Há três razões básicas para manter um sistema específico para os indígenas, diz o médico Douglas Rodrigues, professor da Unifesp, pioneira em curso de especialização em saúde indígena. Uma é a territorialidade. Os povos tradicionais não se organizam com a mesma geografia das cidades. Há parte de uma aldeia ou reserva num município, parte em outro. O Parque do Xingu, por exemplo, espalha-se por nove cidades do Mato Grosso.
Outra razão é que os indígenas têm estruturas medicinais próprias, com raízes, plantas, pajelança. A medicina convencional, via SUS, não pode ser aplicada a eles como a pacientes “brancos”. “Tem de oferecer serviços que sejam complementares e adequados ao sistema deles”, afirma Rodrigues.
Por fim, é preciso levar em conta as diferenças entre indígenas e brancos. Entre os primeiros, a mortalidade infantil, por exemplo, é maior — morre-se muito por diarreia, em virtude de uma questão de hábitos tradicionais, por falta de saneamento.
No Xingu, área acompanhada mais de perto por Rodrigues, cresceu o número de casos de obesidade e de diabetes, graças a mudanças de hábitos alimentares trazidas pelo contato maior com os “brancos”. “Eles não têm a mesma informação, acham que ser gordo é bom.”
O ministro Mandetta acha que tirar dinheiro da saúde indígena também é bom.