Relatório do Brasil à ONU descreve um país que não existe

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Foto: Willian Meira/MMFDH

213 páginas. Esta é a extensão do relatório publicado nesta semana pelo governo federal sobre a situação de direitos humanos no país. Tendo como base recomendações das Nações Unidas ao país, o documento —em consulta pública nesta semana— busca prestar contas do que o Brasil tem feito na área.

Não o faz. Trata-se na verdade de uma obra de ficção digna de nota.

Elaborado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, o documento descreve um país que não existe, ora exaltando políticas pouco priorizadas pelo governo, ora ignorando retrocessos recentes defendidos entusiasticamente pelo próprio governo Bolsonaro.

Vejamos. Enquanto Damares tem desqualificado o Conselho Nacional de Direitos Humanos como órgão ideológico que “está longe de se preocupar com direitos humanos”, no relatório a ministra ressalta a suposta independência administrativo-financeira garantida ao Conselho. Mesma ênfase é dada ironicamente à participação social em um contexto de extinção de conselhos federais.

À redução da pobreza e da fome, que segundo o presidente Bolsonaro não existe, o relatório dedica 20 páginas. Palavra proibida pelo Itamaraty na ONU, “gênero” é repetida diversas vezes no documento. Sequer é mencionada a Portaria 666, que estabeleceu deportação sumária para estrangeiros, apesar do relatório dedicar páginas e páginas a exaltar a Lei de Migração.

Uma das poucas exceções ao surrealismo do documento é a menção expressa ao decreto que extinguiu os cargos dos peritos do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura. Mesmo aqui, faltou defender de que forma tal mudança não violaria as próprias normas das Nações Unidas que determinam a criação desse mecanismo.

Se falta vergonha ao governo Bolsonaro diante da comunidade internacional, parece que também lhe falta orgulho de sua própria política em direitos humanos. É na possibilidade de envergonhamento internacional que recai em parte a própria força do sistema internacional de direitos humanos. O que fazer quando líderes sequer são envergonháveis?

Que relatórios estatais para a comunidade internacional sejam um tanto deslocados da realidade não é novidade. Em 2017, versão preliminar do relatório brasileiro às Nações Unidas não fazia qualquer menção ao rompimento da barragem da Samarco, Vale e BHP Billiton em Mariana, Minas Gerais —o que só foi corrigido após a pressão da sociedade civil organizada.

O que salta aos olhos no relatório lançado nesta semana, na verdade, é a ausência da própria política de direitos humanos bolsonarista. Pode-se ler o documento como quem lê Alice (ou Damares) no País das Maravilhas.

Falando em Lewis Caroll, lembro-me de um dos mais famosos diálogos por ele escritos. Em “Alice Através do Espelho”, indaga a personagem “se podemos fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.” Ao que o sabichão do livro lhe responde: “A questão”, disse, “é saber quem vai mandar —só isto.”

Seria melhor se quem hoje manda no país fosse honesto sobre os retrocessos que com bravatas promovem em direitos humanos. Ao menos assim, as palavras ditas à comunidade internacional poderiam significar de fato o que elas dizem.

Da FSP