Antes de Bolsonaro, Ysani curtia feminismo, LGBT e Jean Wyllys

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Foto: reprodução

Antes de epítetos como “a índia de Bolsonaro”, Ysani Kalapalo, a autoproclamada “indígena do século 21”, não era tão de direita assim.

Ao menos não pela régua que costuma dar as medidas ideológicas no Brasil: falava bem de feminismo, LGBT e sexualidade “moderna” nas aldeias e mal da catequização dos povos. Até o psolista Jean Wyllys, que dizia admirar “desde a época do ‘Big Brother'”, tinha sua estima.

Do povo kalapalo, no Alto Xingu (MT), a youtuber começou a elevar os decibéis direitistas de seu discurso na campanha presidencial de Jair Bolsonaro (PSL), a quem apoiou com entusiasmo.

Na terça (24), num movimento que despertou a fúria de lideranças indígenas de seu Xingu natal, foi levada pelo presidente à Assembleia Geral da ONU e citada em seu discurso como aquela capaz de “externar toda a realidade vivida pelos povos indígenas do Brasil”.

Tratamento simetricamente oposto teve o cacique Raoni. Chegou ao fim o “monopólio” do líder caiapó de 89 anos, referência mundial da causa, disse Bolsonaro.

Ysani, que estima ter 28 anos (sua cultura não conta idade), espelha o presidente ao afirmar que “um único cacique não fala por nós”.

Foi o que disse em entrevista no Congresso, na quarta (25), enrolada numa bandeira do Brasil e ladeada por deputados do PSL. No mesmo dia, Raoni defendeu na Câmara que Bolsonaro deveria “sair para o bem de todos”.

Em março, o afeto pelo cacique octogenário era maior. “Já estive algumas vezes com Raoni, ele é um senhorzinho muito interessante para bater um papinho”, tuitou Ysani, tendo o cuidado de fazer a ressalva: “Gosto dele, só que ele muitas vezes já foi usado pelas ONGs e partidos de extrema esquerda”.

A kalapalo respondia a uma foto que a ministra Damares Alves (Família, Mulher e Direitos Humanos) postou, ela com Raoni. Damares escreveu que os dois discutiram medidas para a proteção de tribos e acrescentou: “#ninguémficaráparatrás”.

Um tópico também debatido em 2018 por Ysani e Bolsonaro. Ela tem um canal de YouTube com 283 mil inscritos, e nele publicou uma conversa com o então pré-candidato à Presidência.

Em clima cúmplice, questionou se era verdade que ele, caso eleito, expulsaria índios de suas terras e mexeria em demarcações já estabelecidas. Ele nega e atribui a “fake news” ao PT, que espalharia “o terror, como os terroristas que sempre foram”.

Propõe que indígenas brasileiros “poderiam viver de exploração” do território deles assim como aqueles dos EUA usufruem de royalties de cassinos instalados nos seus. Hoje, já presidente, Bolsonaro se diz disposto a rever terras já garantidas às tribos.

Ao passar pelo Congresso na volta de Nova York, Ysani disse que as ONGs “estão desesperadas” e “romantizam índio”. “Hoje não cola mais ficarmos parados como 500 anos atrás. Hoje o índio quer ter o mesmo direito que qualquer cidadão brasileiro tem.”

Um reflexo da fala presidencial para líderes mundiais: “Infelizmente, algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas”.

Na Câmara, Ysani enveredou-se por um discurso que parecia saído de um manual progressista, mas é agora reapropriado pela direita: “Querem botar índio no cabresto, o negro no cabresto, o homossexual”.

A esquerda e ela já se tiveram em alta conta. Em maio de 2013, Ysani participou do 10º Seminário LGBT do Congresso Nacional, a convite do mesmo parlamentar do PSOL que, três anos depois, cuspiria no colega Bolsonaro na votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT) na Câmara —em 2019, o segundo viraria presidente, e o primeiro abdicaria do cargo, dizendo-se alvo de ameaças num Brasil agora sob guarda de um homem “que sempre utilizou de homofobia contra mim”.

A kalapalo se disse privilegiada por ter sido chamada “pelo grande deputado Jean Wyllys”, cuja luta “acompanho há muito tempo, desde a época do ‘Big Brother’.”

Fez um discurso para esquerdista nenhum botar defeito, comparando a luta de povos indígenas à dos homossexuais, atacando a usina de Belo Monte (“Belo Monstro!”) e pedindo proteção às terras kaiowás e à Aldeia Maracanã, ocupação no Rio alvejada pela PM naquele ano.

A voltagem feminista eletrizou o ambiente. Ysani evocou lendas de sua tribo nas quais as mulheres “é que eram as deusas” no passado. E “o relacionamento entre elas mesmas era normal” até “um certo homem branco” aparecer, afirmou.

“Ele disse assim: “índios, isso é coisa do diabo. Vocês, homens, têm que dominar essas mulheres. […] Segundo a Bíblia, —estou apenas repetindo o que eles falaram para o nosso povo— o homem nasceu primeiro, e a mulher nasceu depois. Na nossa cultura, quem nasceu primeiro foi a mulher.”

No último ano, seu canal audiovisual aumentou a carga política, com vídeos falando mal do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e da esquerda em geral. Antes, mais corriqueiras eram gravações sobre “feminismo indígena”, absorventes na mata e até curiosidades da vida íntima, como no título “índio faz sexo anal? (“no vídeo de hoje, vou tirar sua dúvida, safadinho”).

No fórum LGBT, a youtuber dizia ter certeza de que um dia os filhos de todos ali ririam de tanto preconceito. “Todo esse pensamento vai ser considerado como o pensamento do Hitler, quando ele estava matando judeus. Vai ser tudo considerado atrasado.”

É a “indígena do século 21” que agora é considerada atrasada por boa parte de seus pares. Às vésperas da assembleia da ONU, caciques de 16 povos do Xingu divulgaram uma carta que dizia: “O governo brasileiro ofende as lideranças ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente em redes sociais com objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento do Brasil”.

O desagravo veio do Grupo dos Agricultores Indígenas do Brasil e da tenente Sílvia Waiãpi, secretária nacional da Saúde Indígena. Primeira índia nas Forças Armadas do país, ela disse ao lado de Ysani, em Brasília, que “este governo nos deu voz”.

Folha conversou com três indígenas do Xingu sobre Ysani, duas delas mulheres (todos pediram anonimato). Delas vieram frases como “temos várias indígenas que são nossas representantes legítimas, mas com certeza ela não está na lista”.

O homem afirmou que o cacique principal dos kalapalo não quer vê-la por perto. “O povo não aceita mais ela aparecer na aldeia. Nunca mais vai pisar.”

O fato de morar há anos em São Paulo fez com que muita gente tachasse Ysani de “índia fake”, como se ela nunca tivesse frequentado as bandas mato-grossenses.

No Natal de 2018, ela postou um vídeo contando sobre seu 25 de dezembro de 2002. Ela e a família, disse, chegaram “sem nada” em São Carlos (SP), e num primeiro momento foram acolhidos por mórmons. Só o pai falava português.

Mudaram-se por causa de uma doença que ela, com “11 pra 12 anos”, e a irmã de nove anos tinham e que o pajé não conseguia curar, afirmou. Os pais acreditavam que as duas estavam sob feitiço de inimigos deles.

Passados 17 anos, Ysani acumula desafetos próprios e fotos com Bolsonaro e a primeira-dama Michelle na ONU. Um dos motes que reproduz nas redes sociais: “Mais Ysani, menos Raoni”. Por ora, ela não quer mais “papinho” com o “senhorzinho” cacique.

Da FSP