Collor: “Bolsonaro ganharia se retirasse ideologia do governo”
O senador e ex-presidente Fernando Collor de Mello (Pros-AL), 70, disse à Folha que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) “ganharia muito se retirasse o aspecto ideológico da construção das suas linhas de governo”.
Collor criticou a política externa conduzida por Bolsonaro e a retórica agressiva adotada pelo mandatário ao se referir a alguns líderes internacionais. “Meu Deus! É algo que me deixa assustado.”
Alvo de um processo de impeachment em 1992 que o levou a renunciar ao Palácio do Planalto, o ex-presidente disse que a influência dos filhos de Bolsonaro no governo é ruim para a administração e se disse preocupado com a falta de base de apoio de Bolsonaro no Congresso. “Ou se tem essa maioria ou não se governa”, afirma.
Collor argumentou ainda que, sem essa sustentação no Parlamento, Bolsonaro pode enfrentar “seríssimas dificuldades”. “Eu não diria um impeachment, mas seríssimas dificuldades que não saberia se ele [Bolsonaro] teria condições de superar”.
No início do seu mandato como presidente, também havia uma pressão sobre o Brasil pela preservação da Amazônia. Como avalia a resposta do governo Bolsonaro à crise ambiental atual? Eu lidaria [com a crise] de forma diferente. A melhor forma de se tratar civilizadamente questões que se colocam na relação entre países é o diálogo, deixarmos a diplomacia dos nossos países atuarem.
Me refiro ao soft power que o Brasil adquiriu, sobretudo a partir conferência no Rio de Janeiro do Meio Ambiente, a chamada Eco 92. O Brasil ganhou um reforço muito grande na sua política externa com esse trabalho, reconhecido hoje internacionalmente como um protagonista dos mais importantes na questão ambiental.
O governo Bolsonaro diz que há uma ameaça à soberania nacional na Amazônia, principalmente em razão das declarações do presidente da França, Emmanuel Macron, sobre um estatuto internacional para a floresta. Essa ameaça de fato existe? A questão da soberania brasileira ou de qualquer outro país é incontestável. Na minha época o presidente francês François Mitterrand disse que o Brasil deveria começar a pensar em soberania relativa para a Amazônia.
Ele obteve de mim uma resposta como presidente da República, mas eu não precisei ser áspero. Precisei apenas estar embasado no bom senso, chamando a atenção para o absurdo daquela ideia. Nós estávamos um ano antes da conferência da Rio 92 e ele [Mitterrand] aceitou prontamente os meus argumentos. Nunca mais falou em soberania relativa da Amazônia.
Onde o governo acertou e onde errou na resposta à crise internacional deflagrada pelas queimadas na Amazônia? Eu acho que o governo não acerta porque ainda não percebeu que a solução para essa crise começa com o estabelecimento de um diálogo. É preciso utilizar os instrumentos que a nossa diplomacia tem para evitarmos esses entrechoques.
Não podemos ver presidentes, como o presidente norte-americano [Donald Trump], falando coisas que nos deixam muito incomodados. Isso não pode servir como exemplo para nós aqui no Brasil. Temos que nos valer da nossa capacidade do diálogo e da busca de consenso, e para isso é necessário colocarmos no campo de jogo os nossos diplomatas. Naturalmente com orientação do presidente da República.
O sr. considera que a política ambiental do governo Bolsonaro tem uma visão ideologizada sobre o assunto? Acredito que o governo ganharia muito se retirasse o aspecto ideológico da construção das suas linhas de governo em relação a temas importantes, sobretudo os que colocam como debatedores a comunidade internacional. Acho que precisaria haver uma maior moderação e retirar o componente ideológico das decisões. Cada vez que se coloca a questão ideológica você divide.
O Brasil precisa se reunificar, o país saiu muito dividido das últimas eleições. Cabe ao chefe de Estado unir a nação, reaglutiná-la em torno de um projeto de Brasil que seja de fácil compreensão. Infelizmente o governo vem aprofundando essas divisões.
Não são incomuns comparações do início do seu governo com o começo da administração Bolsonaro. Há semelhanças? Pode haver semelhanças, mas nós somos diferentes. Minha relação com o Congresso se tornou conflituosa quando da aproximação das eleições municipais de 1992.
O Congresso realmente estava muito ressentido comigo porque eu não estava dando aquilo que eles estavam solicitando. O Congresso brasileiro hoje, em relação ao presidente Bolsonaro, está convivendo até agora de maneira harmônica. As propostas apresentadas pelo governo vêm tendo boa acolhida.
Mas o governo Bolsonaro já sofreu derrotas no Legislativo. Sofreu derrotas, mas no primordial ele tem ganho. Não o governo, eu diria o próprio Congresso. Porque essas medidas que vêm sendo aprovadas recentemente foram em função da liderança do deputado Rodrigo Maia, na Câmara, e do senador Davi Alcolumbre, no Senado. O Parlamento é que vem conduzindo os chamados projetos de reforma.
O que me preocupa é o fato de a base do governo no Congresso não estar constituída. Nós estamos com oito meses [de governo] e não temos uma definição clara sobre quem é base e quem é oposição. Não podemos levar em conta, para calcular a base, a votação da Reforma da Previdência na Câmara. Aquilo não foi fruto de apoio do governo, mas de uma grande articulação feita e coordenada pelo presidente Rodrigo Maia.
Então me preocupa essa maioria não estar bem delineada. É uma regra básica e fundamental, mas às vezes as pessoas se descuidam. Num sistema presidencialista como o nosso, não se consegue governo sem uma maioria dentro do Congresso. Ou se tem essa maioria, ou não se governa.
O presidente Bolsonaro pode vir a sofrer um impeachment por não ter base no Parlamento? Eu acho que a palavra impeachment ficou um pouco corriqueira no Brasil. Não sem justificadas razões, porque já foi empregado duas vezes num período muito curto. Eu não diria um impeachment. Mas eu diria seriíssimas dificuldades, que não saberia se ele [Bolsonaro] teria condições de superar.
Recentemente o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, escreveu que por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não ocorrerá na velocidade desejada. Como vê a influência do núcleo familiar de Bolsonaro no governo? Prejudica [o governo]. Estamos notando claramente que esse núcleo familiar é indissociável. O que qualquer integrante do núcleo familiar fala, a população entende como uma fala do presidente. Obviamente isso prejudica.
Uma declaração como a dada pelo vereador filho do presidente é absolutamente despropositada. E não houve nenhum desmentido formal do presidente, até porque coincidiu com a sua internação. Seria muito bom se o presidente, quando recuperado, viesse a público e dissesse da sua profissão de fé ao sistema democrático.
Qual a sua opinião sobre a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington? O presidente cumpre um ditame constitucional. Cabe a ele indicar para ser embaixador quem ele queira. A pergunta é: fica bem um presidente indicar um parente próximo, sobretudo um filho, para ser embaixador em um país da importância dos Estados Unidos? Não, não fica bem. Mas não se pode discordar da legalidade do ato.
Diz-se também que o deputado indicado para embaixador tem uma boa relação com o presidente norte-americano e a sua família. Sem dúvidas isso é um ativo importante. Tanto que a primeira coisa que um diplomata tem em mente, quando vai para um posto, é estabelecer boas relações com os integrantes daquele governo.
Mas como o sr. vai votar na indicação? Isso é uma decisão que cada senador tomará no momento oportuno e quando for aberto o painel de votação.
O governo Bolsonaro defende mudanças no Mercosul, com uma maior ênfase comercial e uma revisão da Tarifa Externa Comum. O sr. assinou o tratado de criação do bloco. Acha que ele precisa ser reformado? Estou absolutamente de acordo. O Mercosul sofreu nos últimos anos reveses por sua condução ter sido muito politizada. Deixaram de lado a agenda econômica e priorizaram a agenda política. Em termos gerais eu concordo que o Mercosul ganhará bastante caso seja colocado em prática essa visão mais econômica.
O presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes (Economia) disseram recentemente que, caso a chapa composta por Alberto Fernández e a ex-presidente Cristina Kirchner ganhe as eleições na Argentina e feche a economia do país vizinho, o Brasil poderá sair do Mercosul. O que acha dessa declaração? Eu acho que a declaração do presidente foi um descuido. Naturalmente ele irá ponderar isso. Não podemos interferir na política interna de países, muito menos de um vizinho e nosso terceiro parceiro comercial. Se o presidente [Bolsonaro] tem preferência pelo governo A, acho que deveria guardar isso para si.
Mas considera a saída do Brasil do Mercosul uma hipótese viável? Não, não. O Mercosul não vai fechar as portas. Isso é impossível, nós chegamos a um ponto de não retorno.
O presidente Bolsonaro realizou desde o início do seu mandato uma série de críticas públicas a diferentes líderes mundiais. Para citar alguns, Macron, Angela Merkel (Alemanha) e Evo Morales (Bolívia). Isso prejudica o Brasil? O prejuízo existe sobretudo na imagem do Brasil lá fora. A imagem do Brasil se ressente muito dessas imprecações —de ambos os lados, não é só do lado brasileiro. Na relação entre os presidentes nem sempre as conversas são as mais agradáveis, mas o importante é que se estabeleça o respeito.
Eu acredito que em algum momento o presidente [Bolsonaro] irá refletir sobre a sua postura com chefes de Estado de outros países, para trazê-la para o campo da racionalidade. Porque isso vai atender os interesses superiores do Brasil. Não essa discussão por meio da mídia, falando essas coisas de chefes de Estado que, meu Deus! É algo que me deixa assustado.
Da FSP