Estadão critica fala de Bolsonaro na ONU
Na semana passada, decerto aconselhado pela ala ajuizada de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro prometeu que faria um discurso “conciliador” na abertura da Assembleia-Geral da ONU. De fato, tratava-se de uma ótima oportunidade para tentar desfazer os equívocos que ele e seus ministros mais radicais cometeram ao hostilizar diversos países e governos que vêm se mostrando preocupados com os incêndios e a devastação na Amazônia. Poderia, se tivesse dotes de estadista, recolocar o Brasil na comunidade de nações que nutrem genuíno interesse pelo futuro da humanidade, o qual depende diretamente da preservação do meio ambiente.
Repetia dessa forma seu constrangedor discurso de posse, quando disse que sua chegada ao poder estava “libertando” o País do “socialismo” – ignorando o fato óbvio de que seu antecessor, o presidente Michel Temer, nada tinha de socialista, nem tampouco, a rigor, os governos anteriores. Tratava-se, tanto por ocasião da posse como agora na ONU, da reafirmação de um dos muitos slogans da campanha eleitoral de Bolsonaro, tão estridentes quanto desprovidos de significado real.
O Brasil, de fato, estava sob ataque, mas não dos “socialistas”, e sim de quadrilhas de corruptos que desmoralizaram a política e assaltaram as burras da República. Corrupção não depende de socialismo ou de antissocialismo, como o próprio presidente da República deve saber. Ademais, é bom lembrar que a grande corrupção da era lulopetista havia sido quase totalmente desbaratada bem antes de Bolsonaro chegar à Presidência, graças aos esforços da Operação Lava Jato. Ou seja, Bolsonaro tenta se incluir – e em posição de liderança – num processo do qual ele não participou em nenhum momento.
Tais questões não deveriam ter sido levadas à tribuna da ONU, ainda mais envolvidas num discurso mistificador e demagógico. Não havia ambiente para isso. Em alguma medida, lembra o vexame protagonizado em 2014 pela então presidente Dilma Rousseff, quando transformou a ONU em palanque de sua campanha à reeleição – e, numa entrevista coletiva em Nova York, defendeu o “diálogo” com o Estado Islâmico, que na época havia decapitado reféns, para horror do mundo civilizado.
Mas nenhum delegado presente ao discurso de Bolsonaro deve ter se decepcionado, já que certamente eles ouviram o que já esperavam ouvir, isto é, ataques à imprensa internacional, acusações de “colonialismo” e insinuações de que estrangeiros defendem os índios e o meio ambiente como pretexto para cobiçar as riquezas da Amazônia. Ora, cobiça sempre houve e sempre haverá, mas a soberania da Amazônia não está sob ameaça real desde o século 19.
Se Bolsonaro estivesse realmente preocupado em afastar qualquer risco à soberania brasileira sobre a Amazônia, teria adotado um tom conciliador, em busca de harmonia com a comunidade internacional.
Desde o Barão do Rio Branco, o Brasil, ciente de seus limites militares e econômicos, optou pelo diálogo multilateral – e, ao não se alinhar fanaticamente a uma única potência, como faz Bolsonaro em relação aos Estados Unidos de Donald Trump, ganhou o respeito de toda a comunidade internacional.
Bolsonaro, assim, erra em dobro: ao investir numa retórica antagonista, ameaça apartar o Brasil da sociedade das nações; e ao tratar de maneira leviana das questões ambientais, com as quais todos os que têm responsabilidade deveriam se preocupar, coloca em risco o futuro do País que governa. Tudo isso em nome de um ideário retrógrado e fantasioso.
Do Estadão