Miriam Leitão: “É insensatez ignorar o golpismo dos Bolsonaro”

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Foto: reprodução

Os períodos autoritários sempre nasceram simulando a defesa de ideias que não poderiam ser implantadas na democracia. As instituições democráticas seriam estorvo nessa visão autoritária. No Brasil, dizia-se que 1964 fora também contra a corrupção e a inflação. Quem conseguiu vitórias nas duas frentes foi a democracia. Golpes às vezes são dados com o pretexto de acelerar mudanças econômicas. O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez. Esse é o contexto da mensagem do segundo filho. Ela precisa ser levada a sério e não ser desdenhada como mais uma do “carluxo”.

Carlos sempre foi o especialista em mídia digital e é quem fala para as alas radicais do bolsonarismo. A tentativa de se explicar depois adianta pouco. Ele não foi mal interpretado. Também não foi uma postagem errada, de impulso ou um deslize. Queria dizer mesmo que as mudanças que o governo prometeu não estão funcionando e há um motivo. “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer”. Defendeu que a roda está “girando em seu próprio eixo” e conclui que os que “nos dominaram” continuam dominando. O que ele quer dizer? O que ele disse. Está explícito. Não se pode acusá-lo de ambiguidade.

Como não foi dúbia a afirmação do deputado Eduardo Bolsonaro durante a campanha de que o STF poderia ser fechado bastando “um cabo e um soldado”. Esse desprezo por um dos poderes da República fica mais claro na fala completa dele durante a campanha presidencial. Alguém perguntou o que aconteceria se o STF impugnasse, por alguma irregularidade, a candidatura do pai, e ele respondeu:

— Se o STF pagar para ver vai ser ele contra nós. Será que eles vão ter essa força mesmo? O pessoal até brinca lá, cara: para fechar o Supremo não precisa nem de um jipe, basta um soldado e um cabo. E não é para desmerecer o soldado e o cabo. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF.

Perguntado insistentemente sobre isso, Bolsonaro infantilizou o deputado: “Eu já adverti o garoto.” Eduardo foi direto no seu desprezo a uma das instituições da República democrática. Só ficou vaga a frase “o pessoal brinca lá, cara”. Quem é o “pessoal” e onde é “lá”? Desde que passou a ocupar funções públicas Bolsonaro tem defendido regimes de força, tem elogiado torturadores e os seus crimes. Não há fatos isolados neste caso.

Em todos os gestos, os filhos do presidente se colocam como fidalgos, o que também não é democrático. Quem seria admitido em um grande hospital portando arma? Eduardo repetiu ontem o gesto na Firjan. Se virar embaixador nos Estados Unidos ele conseguirá embarcar, desembarcar, fazer diplomacia com a pistola no cinto?

Que “transformação” está sendo difícil, talvez impossível, pelas vias democráticas? Isso Carlos não disse, mas o governo enfrenta duas frentes de descontentamento. A campanha inventou que o bolsonarismo era herdeiro da onda de combate à corrupção que já vinha ocorrendo pela via democrática. Prometeu também crescimento econômico. Nove meses depois, há evidentes ataques à operação de combate à corrupção, e a economia desacelerou da fraca retomada que chegou a esboçar em meados do ano passado. E isso está decepcionando quem acreditou nas promessas de campanha. Aí veio a tentativa de achar um culpado. No caso, seria a democracia.

Até agora, o que houve foi o desmonte do combate à corrupção patrocinado direta ou indiretamente pelo grupo no poder. Para proteger o primeiro filho, Flávio, das dúvidas razoáveis a respeito do que acontecia em seu gabinete, vale tudo: trocar o comando da Polícia Federal no Rio, e talvez até em Brasília, desmontar o Coaf, e conseguir uma medida liminar que parou inúmeras investigações e nomear um PGR que se apresentou como submisso ao governo. Na economia, o ambiente continua árido, sem qualquer sinal de melhora a curto prazo. É nesse ambiente de frustração que falou o filho do presidente, considerado o especialista em comunicação da família.

As palavras querem dizer o que elas dizem. Não adianta tentar consertá-las depois. Tratar como naturais declarações antidemocráticas só porque elas são recorrentes é deixar-se entorpecer pelo absurdo. É exatamente a repetição que as torna mais graves.

De O Globo