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Na comitiva do Bolsonaro, tem admiradora de Jean Wyllys

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Em cruzada para convencer a comunidade internacional sobre sua política ambiental, presidente levou a Nova York indígena que diz ter se tornado de direita ao se dar conta de que repetia ideias como ‘papagaio’.

“Olá a todos. É uma honra estar aqui hoje. Foi um privilégio receber o convite do grande deputado Jean Wyllys. Acompanho a luta dele há muito tempo, desde a época do programa Big Brother (risos). O que eu vou falar hoje é da luta dos povos indígenas, que também se compara muito à luta dos homossexuais.”

Foi assim que, em 2013, a indígena Ysani Kalapalo se apresentou ao microfone, diante de parlamentares e do público que assistia ao X Seminário LGBT do Congresso Nacional, promovido pelo então deputado federal Jean Wyllys, do PSOL.

À saudação se seguiu uma fala contundente contra a homofobia e contra movimentos religiosos que, na avaliação de Ysani, tentavam impor aos indígenas sua visão conservadora de mundo, questionando-lhes até mesmo o direito à alma.

Naquele momento, é improvável que Ysani, Wyllys ou qualquer outro dos presentes pudesse imaginar que seis anos mais tarde, em setembro de 2019, ela estivesse a bordo do avião presidencial como integrante da comitiva de Jair Bolsonaro, do PSL, para defender na Assembleia Geral da ONU a política ambiental e indígena do governo.

“Existe muito fake news dizendo sobre as queimadas. Estão dizendo que é culpa do governo Bolsonaro, que ele entrou e está queimando todo o Xingu. Não existe isso daí. A nossa cultura é fazer roça pra plantar mandioca e pra plantar outras coisas. Isso faz parte da nossa cultura, não é porque entrou um novo governo e ele tá queimando tudo. Nessa época de ano, essa época quente, sempre houve queimadas pra queimar roça. Isso faz parte, é normal. Isso é tudo exagero que a mídia está fazendo, não é culpa do governo”, afirma Ysani em um vídeo de dois minutos e meio postado há dois dias na página do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com legendas em inglês.

Os argumentos de Ysani vão ao encontro da mensagem que a gestão Bolsonaro tem tentado difundir, depois que uma série de queimadas na Amazônia e a reação do governo alarmaram a comunidade internacional e levaram a uma crise diplomática entre Brasil e França.

O país passou a ser questionado sobre sua capacidade de preservar a Floresta Amazônica. Em resposta, a gestão Bolsonaro tem dito que há um ataque à soberania brasileira e que o Brasil é vítima de um alarmismo climático que visa a enfraquecer a produção agropecuária nacional em disputas comerciais.

Nesta terça-feira (24/09), o presidente brasileiro subirá ao púlpito da Assembleia Geral da ONU para repetir que o Brasil tem protegido o meio ambiente e deve ser respeitado.

O plano do governo é que Ysani esteja na plateia, assistindo à fala do presidente. Sua presença será uma forma de endossar e chancelar esse discurso.

Convencer a comunidade internacional tem se mostrado uma tarefa complexa. O discurso do Brasil na Cúpula do Clima, na ONU, foi cancelado, depois que os organizadores concluíram que o país não tinha o que dizer na reunião, ocorrida nesta segunda-feira.

Embaixadores ouvidos sob condição de anonimato pela BBC News Brasil dizem que o país está perdendo liderança e soft power em uma de suas maiores áreas de expertise: a conservação natural e o desenvolvimento sustentável.

Ascensão como liderança

Ysani se divide desde os 12 anos de idade entre a vida na aldeia Tehuhungu no parque do Xingu e a vida urbana em São Paulo. Como uma jovem voz indígena, ela conseguiu sucesso no YouTube.

Seu canal tem 270 mil inscritos. Nos vídeos, ela fala sobre os mais variados temas com a câmera em posição de selfie. A popularidade pode tê-la convertido em digital influencer, mas sua posição como uma líder indígena no sentido tradicional da palavra é questionada.

“Ao contrário do homem branco que (na maioria das vezes) elege um político sem preparo como liderança, os indígenas recebem orientações e treinamentos desde muito cedo até o momento de se tornarem líderes e assim representar seu povo”, afirmou em texto o Instituto Raoni, do cacique Raoni Kaiapó.

Raoni, recentemente indicado para o prêmio Nobel da Paz, era uma das lideranças mais elogiadas por Ysani há cerca de cinco anos. Hoje, se tornou alvo preferencial das críticas da youtuber indígena.

Em carta de repúdio à presença de Ysani na comitiva presidencial, 16 líderes dos povos do Xingu, inclusive o cacique da etnia de Ysani, os Kalapalo, divulgaram uma carta afirmando que “o governo brasileiro, não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida”.

Para o antropólogo Estevão Fernandes, da Universidade Federal de Rondônia, para além das questões políticas, o conflito entre lideranças e Ysani tem um aspecto de choque geracional.

“Por conta da ampliação do ensino nas aldeias e da incorporação cada vez maior de indígenas em escolas de ensino médio fora das aldeias e nas universidades, esses jovens indígenas vão se articulando. Eles funcionam como ‘embaixadores’ de suas próprias culturas nos grandes centros e não querem apenas ser vistos como ‘embaixadores’, mas sim como líderes, pois entendem ter a articulação e o conhecimento necessários para buscarem, eles mesmos, os benefícios para suas comunidades. No entanto, a maneira pela qual eles agem não é a mesma a partir da qual opera a liderança no âmbito dos povos indígenas no país”, diz Estevão.

‘Indígena de direita’

Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro tem afirmado que não pretende demarcar nenhum centímetro a mais de terra indígena e, já no poder, tentou transferir os processos de demarcação para o Ministério da Agricultura ? levantando temor entre líderes indígenas de que a questão seja submetida a interesses dos ruralistas.

O presidente também tem sugerido que pretende flexibilizar as regras sobre o uso dessas áreas, que pertencem à União, para permitir a extração de minérios, a passagem de estradas e mesmo o arrendamento dessas extensões territoriais para fim agrícola.

“Muitas reservas têm aspecto estratégico. Alguém programou isso. O índio não faz lobby, não fala a nossa língua e consegue hoje em dia ter 14% do território nacional. Uma das intenções é nos inviabilizar”, afirmou o presidente no final de agosto, em meio à tensão quanto às queimadas na Floresta Amazônica.

A relação de grupos indígenas com os governos brasileiros é historicamente tensa. No período militar, a integração da Amazônia trouxe devastação e epidemias para as aldeias indígenas, com a abertura de estradas e construções de usinas hidrelétricas.

Mas governos de esquerda tampouco mantiveram relação mais harmoniosas com essas populações. Além de não demarcar novas terras, a ex-presidente Dilma Rousseff seguiu o plano de construir a Usina de Belo Monte, em Altamira (PA).

Ysani foi uma das vozes que mais combateram a instalação da usina na Amazônia e se considerou traída por Dilma, a quem havia apoiado. Até 2015, ela liderava um grupo conhecido como Movimento Indígenas em Ação. Sua militância tem pelo menos 11 anos, mas nos últimos 4 anos ela afirma ter percebido que parecia um “papagaio”, repetindo ideias em que não acreditava.

“As pessoas dizem que eu fui comprada pra ser direitista. Eu sou tão gananciosa a ponto de vender a minha alma. Passei por muitos movimentos em que eu realmente vi as pessoas se venderem por migalha”, ela explica no vídeo “Por que eu sou indígena de direita”.

“Criar conspirações de que eu fui paga pelo Jair Bolsonaro, eu jamais faria isso”, continua na mesma publicação. Ela diz apenas que estudou política e entendeu que se reconhece mais nos ideários da direita.

Em 2018, ela afirma ter ido à casa de Bolsonaro e ter sido convencida por ele a dar seu voto. Para Ysani, muitos dos seus parentes são de direita, apenas “não sabem disso”.

A BBC News Brasil pediu à Presidência da República que intermediasse o contato com a indígena em Nova York para uma entrevista, mas a assessoria de imprensa informou que ela dificilmente falaria.

Única organização indígena a apoiar explicitamente a ida de Ysani à ONU, o Grupo de Indígenas Agricultores saudou, em carta, a iniciativa de Bolsonaro e afirmou em nota que “o ambientalismo radical e o indigenismo ultrapassado e fora de sintonia com o que querem os povos indígenas representam o atraso, a marginalização e a completa ausência de cidadania”.

Um dos líderes desse movimento é Arnaldo Paresi, da etnia de mesmo nome. Em fevereiro desse ano, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, visitou a tribo, uma das poucas que expressam interesse em mudanças na legislação para áreas indígenas.

Os Paresi defendem o uso de sementes transgênicas nas reservas, hoje proibido por lei. A BBC News Brasil não localizou os contatos do grupo de indígenas agricultores, mas suas pautas têm sido divulgadas pela Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja). A BBC não localizou representantes da associação em sua sede em Brasília para comentar.

Para o antropólogo Fernandes, a questão crucial para os indígenas não é ser “de esquerda”ou “de direita”. Para explicar o seu ponto de vista, ele recorre às palavras do cacique Ailton Krenak: “No ano passado, Krenak disse que não se preocupava com a mudança de governo, que eles resistem há 500 anos e vão seguir resistindo ? que a ele preocupava se os brancos, sim, resistiriam. Então é isso. Os indígenas existem e resistem muito antes dessas divisões e vão seguir lutando quando elas já forem passado”.

De  BBC