Governo quer excluir indígenas de discussões que os afetam

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Foto: Pedro Ladeira – 24.abr.2019/Folhapress

Um grupo de trabalho do governo federal articula solicitar à AGU (Advocacia Geral da União) que reveja um parecer de 2006 do próprio órgão.

Ele contesta os efeitos da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que prevê a necessidade de consultar os povos indígenas e comunidades tribais sobre medidas que os afetem, como grandes obras.

A informação consta de um texto do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), vinculado ao Palácio do Planalto, obtido pela Folha.

O grupo de trabalho é coordenado pela Casa Civil da Presidência e formado por vários órgãos ligados ao governo Jair Bolsonaro (PSL).

A convenção foi adotada em 1989 em Genebra, na Suíça, aprovada pelo Congresso brasileiro em 2002 e tornada lei em 2004 por decreto presidencial.

Ela estabeleceu a necessidade de consultar os povos indígenas e comunidades tribais “interessados, mediante procedimentos apropriados”, de forma prévia e livre, toda vez que “sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.

Ao longo dos anos, a convenção se tornou uma das principais proteções das comunidades indígenas e quilombolas atingidas por grandes empreendimentos no país, como hidrelétricas e rodovias.

O Ministério Público Federal tem recorrido à convenção para questionar obras que possam atropelar os direitos indígenas, obtendo em vários casos decisões favoráveis da Justiça Federal.

O documento do GSI indica que o governo pretende contestar a forma pela qual a convenção é aplicada.

Em um dos slides da apresentação em power point, o texto chega a lembrar que o prazo para o Brasil “denunciar” a convenção —ou seja, poderia informar que deixaria de segui-la— vai de 5 de setembro de 2021 a 5 de setembro de 2022.

As 13 páginas da apresentação resumem a reunião ocorrida em 31 de julho no Palácio do Planalto para a instalação de um grupo de trabalho para discutir a convenção 169 e supostos “impactos no desenvolvimento do país”.

Cita dois casos, o da construção de uma linha de energia elétrica de alta tensão na terra indígena waimiri-atroari (Amazonas e Roraima) e o asfaltamento de um trecho da rodovia BR-319.

“O MPF invocou a OIT 169, manifestando o entendimento de que o conceito de comunidade tribal se aplicaria também às comunidades ribeirinhas e extrativistas”, diz o texto com a logomarca do GSI.

No campo das “deliberações”, o texto estipula a criação de um outro grupo de trabalho para elaborar “proposta de decreto de regulamentação da consulta prévia aos povos indígenas e tribais”.

A segunda ação é “solicitar à AGU rever o seu parecer sobre a aplicabilidade da OIT 169 sobre as comunidades quilombolas”.

O grupo de trabalho lista três “problemas a superar” no tocante à convenção: “Não há regulamentação sobre como se deve realizar a consulta; equiparação de comunidades quilombolas a comunidades tribais, parecer da AGU (revisão do parecer nº 1/2006; e impacto direto em projetos de interesse para o país (consulta prévia)”.

Segundo o texto, o parecer de 2006 tem repercussão nos processos de consulta prévia porque equipara “comunidades quilombolas a comunidades tribais”.

Há disputas territoriais entre Forças Armadas e quilombolas em alguns pontos do país, como no caso do Forte Real Príncipe da Beira, uma fortaleza do século 18 em Costa Marques (RO).

A área é reivindicada pelo Exército sob o argumento de se tratar de área de segurança nacional, enquanto as famílias quilombolas denunciam que estão sofrendo restrições em suas atividades produtivas.

Elaborado pelo então consultor-geral da União, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, e aprovado pelo então advogado-geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, o parecer é considerado, na AGU, uma referência no tema da consulta prévia a quilombolas.

Ele foi elaborado exatamente para responder uma dúvida encaminhada pelo GSI.

O parecer estabelece, por exemplo, que “os direitos e interesses das comunidades devem ser preservados juntamente com os do interesse público da segurança nacional”.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, pesquisadora da Universidade de Chicago e da USP e membro da Comissão Arns, criada para defender e promover os direitos humanos, diz ser “evidente que as garantias de consulta prévia a povos indígenas, quilombolas e povos tradicionais em geral incomodam projetos e que se tentará sempre restringir sua aplicação”.

Ele cita como exemplo o projeto do governo de ampliar a base de lançamento de satélites de Alcântara, no Maranhão, o que levaria à remoção de milhares de famílias quilombolas.

O procurador da República Julio Araújo, que atua no caso do linhão de Roraima, disse que “qualquer tentativa” de não aplicar a convenção em comunidades quilombolas contraria um entendimento já firmado pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Sobre a tentativa de regulamentação da consulta, Araújo disse que governos anteriores, em especial o de Dilma Rousseff (PT), tentaram essa regulamentação “apenas com o objetivo de esvaziar o alcance da convenção”. “Agora parece a repetição, como farsa, da tragédia que já havia ocorrido, com a mesma lógica de viabilizar empreendimentos.”

Em nota à Folha, o GSI afirmou que participa do grupo de trabalho mas “não exerce a sua coordenação” e que “não fez solicitação à AGU para rever seu parecer sobre este assunto”.

A AGU informou que “não recebeu nenhuma demanda” relacionada a esse assunto do grupo de trabalho.

Da FSP