Por que a mensagem do Papa na Amazônia incomoda
Para o papa Francisco, a ecologia não deve ser associada somente a temas óbvios como a derrubada de florestas, a extinção de animais e a poluição do ar, mas também às múltiplas consequências do modelo econômico que levou o planeta ao estado atual de degradação social e ambiental.
Segundo o papa, ecologia também diz respeito às tradições perdidas por comunidades indígenas impactadas por grandes obras, aos humanos que foram substituídos por robôs em indústrias e às pessoas que vivem com crises de ansiedade e são incapazes de admirar a beleza ao redor.
Essa noção de ecologia, que Francisco chama de “ecologia integral”, será um dos eixos do Sínodo da Amazônia, no qual ele receberá bispos de todos os nove países amazônicos a partir deste domingo (6/10), no Vaticano. Cinquenta e sete bispos brasileiros participarão do encontro, que se encerrará em 27 de outubro.
Sínodos são reuniões entre o papa e seus bispos de determinada região ou tema para definir estratégias da igreja nessas áreas. São encontros mais restritos do que os concílios, que agregam bispos do mundo todo.
A cúpula é vista com preocupação pelo governo Jair Bolsonaro, que já vem enfrentando críticas no Brasil e no exterior por suas posturas em relação à Amazônia e à questão ambiental.
O coro contrário às políticas do governo inclui vozes importantes da Igreja Católica no Brasil, como o ex-arcebispo de São Paulo e atual presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica, Dom Cláudio Hummes.
Hummes, que será o principal responsável pela redação dos documentos produzidos no sínodo, defendeu recentemente o prosseguimento das demarcações de terras indígenas, iniciativa à qual Bolsonaro se opõe e que deve ser abordada no encontro no Vaticano (leia mais abaixo).
O exemplo de São Francisco
Em 2015, Francisco explicou o conceito de ecologia integral na única encíclica produzida inteiramente em seu papado, a Laudato Si’ (louvado sejas, em italiano). Encíclicas são os principais instrumentos pelos quais a Igreja Católica aconselha seus cerca de 1,2 bilhões de fiéis espalhados pelo mundo.
No início do documento, o papa se referiu a são Francisco de Assis, que viveu entre os séculos 12 e 13 na Itália e de quem ele tomou o nome ao virar pontífice. Segundo Francisco, o santo italiano praticava a ecologia integral em seu dia a dia.
“Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior.”
Para o papa, o exemplo de são Francisco mostra que a “ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia”.
Ele explica: “Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a reação de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas.”
“Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos.”
Casa comum
O título da encíclica, “Laudato si'”, é uma citação do Cântico das Criaturas, em que são Francisco exaltou a natureza como um reflexo da imagem de Deus.
O subtítulo da encíclica é “sobre o cuidado da casa comum”, que trata de outro conceito associado à noção de ecologia integral. São Francisco se referia à “casa comum” como “nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.
Para proteger essa casa comum, o papa conclama “toda a família humana” a se unir “na busca de um desenvolvimento sustentável e integral”.
Em artigo na revista Pensar, da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, o padre Delmar Cardoso diz que a associação que Francisco faz entre “casa comum” e “família humana” dialoga com a filosofia grega.
Na Grécia Antiga, diz Cardoso, a palavra que significava “família” era a mesma que significava “casa”. “Francisco convida a olhar o mundo e as pessoas que nele habitam como uma única e mesma família ou como uma família de famílias”, diz o padre.
Plástico, lixo, desperdício
Na encíclica, o papa lista ações práticas de uma ecologia integral, como “evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias.”
Mas ele diz que as soluções para a crise planetária exigem simultaneamente “combater a pobreza” e “devolver a dignidade aos excluídos”.
“É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental”, diz o pontífice.
Humanos X máquinas
Na encíclica, Francisco trata ainda da questão do trabalho e de como o tema se liga à noção de ecologia integral.
Para ele, trabalhar é uma “necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal”.
Mas ele afirma que a “orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas”.
“É mais um exemplo de como a ação do homem se pode voltar contra si mesmo”, conclui.
Outro entrave à realização da ecologia integral é a falibilidade de governos e sistemas institucionais, diz o papa.
“As leis podem estar redigidas de forma correta, mas muitas vezes permanecem letra morta. (…) Sabemos, por exemplo, que países dotados de uma legislação clara sobre a proteção das florestas continuam a ser testemunhas mudas da sua frequente violação.”
Questão indígena
O tema que tem gerado mais atritos entre a Igreja Católica e o governo Jair Bolsonaro é a questão indígena. Desde que se tornou papa, Francisco tem se reunido com representantes de comunidades nativas de várias partes do mundo e defendido suas formas tradicionais de existência.
Na encíclica, ele aborda a questão indígena e a associa à noção de ecologia integral. Para Francisco, “é preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura de um lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo.”
Segundo o papa, o consumismo, incentivado pela economia globalizada atual, “tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade”.
Ele se refere então aos efeitos que a “intensa exploração e degradação do meio ambiente” podem ter para comunidades nativas por “esgotar não só os meios locais de subsistência, mas também os recursos sociais que consentiram um modo de viver que sustentou, durante longo tempo, uma identidade cultural.”
Seria o caso, por exemplo, de terras indígenas afetadas pelo garimpo ilegal no Brasil. Especialistas relatam que, nos territórios onde ocorre a atividade, muitas famílias deixaram de fazer roças, de pescar e de caçar – tanto porque o garimpo afastou os animais, quanto porque com o dinheiro que recebem dos garimpeiros passaram a comprar comida industrializada nas cidades, abandonando tradições associadas à alimentação ancestral.
“O desaparecimento de uma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou vegetal”, diz o papa. “A imposição de um estilo hegemônico de vida ligado a um modo de produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.”
“Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projetos que afectam os seus espaços”, prossegue Francisco.
Ele diz que, para as comunidades indígenas, “a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores”.
“Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projectos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.”
Paz social e paz interior
Para o papa, ecologia integral também tem a ver com o cultivo da “paz social” e da “paz interior”.
A primeira categoria diz respeito à “estabilidade e a segurança de uma certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência”.
A segunda trata da capacidade de desfrutar da beleza da criação divina.
“A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida.”
Por fim, diz Francisco, a ecologia integral também é feita de pequenos gestos cotidianos, “pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo”.
“Pelo contrário, o mundo do consumo exacerbado é, simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas formas.”
De BBC BRASIL