Especialista diz que discussão da 2a instância só visa Lula

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Foto: Fabio Motta/Estadão

O Congresso Nacional deveria julgar em outro momento, longe do calor dos fatos, a possibilidade de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que assegure o cumprimento da pena após condenação em segunda instância. A avaliação é do cientista político Sérgio Abranches, para quem seria prejudicial tomar partido em uma decisão apenas para punir ou isentar alguns políticos.

Segundo ele, o debate político está contaminado pela soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última semana, após 580 dias preso. “Fazer uma mudança institucional apenas para punir ou permitir que alguém escape de punição não é bom. Tem de ser uma discussão de direito, filosófica, doutrinária”, afirmou.

Na entrevista, falou ainda do papel de Lula como força aglutinadora da oposição, da resistência ao autoritarismo e de um possível acordo entre lideranças da esquerda e do centro para constituírem uma frente opositora ao atual governo.

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Na sua avaliação, o que a soltura do ex-presidente Lula muda no cenário político brasileiro?

A oposição estava muito desarticulada e o principal partido da oposição no congresso é o PT, tem a maior bancada da Câmara, uma bancada razoável no Senado. E o PT estava, basicamente, envolvido no movimento ‘Lula Livre’, sem uma liderança clara. Com a saída do Lula, o impacto maior é estruturar e coordenar a direção da oposição.

Há uma tese de que, caso o ex-presidente tenha um discurso mais radicalizado, isso pode favorecer o presidente Jair Bolsonaro. Como vê isso?

Se Lula optar por uma polarização que leve a sociedade a ver o mundo entre lulismo e bolsonarismo, de fato será pouco produtivo e tende a dar a Bolsonaro e ao movimento que o levou ao poder mais longevidade e importância do que de fato ele tem. Agora, se fizer uma oposição estruturada, capaz de fazer frente às investidas do governo, seria positivo. Abrir para outras correntes da oposição e de resistência ao Bolsonaro. O Lula é a liderança com maior capacidade de articular uma frente ampla contra o autoritarismo. Capacidade, ele tem. Liderança, ele tem. E a percepção estratégica da política, também. A questão é saber se ele vai querer.

Como o senhor avaliou as primeiras manifestações de Lula após sua soltura?

Tomei como um desabafo. Ele ficou por um longo período sem poder falar de forma mais ampla, por 580 dias, apenas entrevistas ou mandando recados. Então, em seu primeiro contato com sua base e seus simpatizantes, é natural que ele faça um desabafo e se deixe levar mais pela emoção. Mas é um ser político e, agora, vai começar a refletir mais sobre qual papel estratégico ele vai desempenhar neste momento tão complicado. Gostaria de acreditar que as forças políticas no Brasil serão capazes de fazer um acordo inteligente e tolerante para se opor ao que está acontecendo.

Estamos escorregando devagarinho para o autoritarismo. Um ato de censura, uma interdição a uma produção cultural, uma mudança na prioridade da área científica contra o conhecimento e a liberdade acadêmica.

Há muita interdição, agressividade, isso cria um clima muito ruim, de sufocamento da capacidade de se debater, das liberdades na sociedade e interrompe processos fundamentais para o futuro da pesquisa, da produção cultural, do campo diplomático. Temos abdicado de exercer um papel de liderança.

É viável esse acordo?

Gostaria muito que houvesse um entendimento do centro até a esquerda para defender os valores do pluralismo, da democracia e da controvérsia com respeito mútuo. Sem essa polarização que interdita a voz do outro, do pensamento diferente, da discordância. Se vai ser possível, vamos ver na prática. Mas é o que seria melhor para o País.

Uma frente só do centro seria conservadora demais para de fato empolgar uma parte da sociedade brasileira que está preocupada com esses retrocessos comportamentais do governo.

E uma esquerda muito radical que não aceita posições do centro, essa divergência natural em torno de políticas econômicas, também seria ruim. Não permitiria que se fixasse uma plataforma de efetivamente defesa da democracia.

O senhor entende que faltava uma oposição às ideias liberais do ministro Paulo Guedes?

Acho que essa questão é menos importante. Uma parte dessas mudanças é apenas decorrência das restrições fiscais que são mais ou menos globais. Tem a ver com a mudança na forma pela qual o capitalismo se articula financeiramente ao redor do mundo. Então, de um jeito ou de outro, isso tem de ser feito.

Pode não ser desse jeito, pode ser mais bem feito, mas não há dúvidas de que são questões que têm de ser tratadas.

Mais importante é ter uma oposição ao movimento na direção do autoritarismo, da censura, da interdição de pautas e debates. Em questões como gênero, racismo, que são pautas que o PT defendeu. E que neste momento estão basicamente em retrocesso e sob ataque do governo e seus simpatizantes.

O discurso do Lula pode impactar, de alguma maneira, as maiorias formadas no Congresso Nacional em torno das reformas?

Não acredito que terá grande impacto. Mas tem papel importante em questões como o armamento, os direitos da mulher, e em várias áreas dessa pauta de costumes que é o que o Bolsonaro dá mais importância e que pode trazer mais danos para a sociedade. E, para reformas que estão sendo feitas do ponto de vista fiscal e tributário, pode dar uma discussão mais substantiva.

Existe interesse nos comandos do Senado e da Câmara dos Deputados em discutir uma proposta que assegure a possibilidade de prisão em segunda instância?

A discussão da segunda instância está contaminada por uma série de questões subjetivas e não de procedimentos de direito. Se fôssemos julgar abstratamente, é evidente que no Brasil a ideia do trânsito em julgado e a noção de quando é legítimo e justo iniciar o cumprimento da pena é leniente demais.

Não há democracia no mundo que tenha possibilidade dessa quantidade de recursos protelatórios que o Brasil tem e privilegia basicamente os mais ricos. Entendo que o cumprimento da pena a partir da segunda instância é o melhor caminho, de maneira abstrata. E as instâncias superiores – STJ e STF – ficariam para ver a conformidade da sentença.

E há clima para essa discussão?

Vejo várias complicações. Nesse clima de radicalização e particularização de questões, talvez o Congresso não seja capaz de tomar uma decisão objetiva que busque o melhor direito. Uma decisão em cima do calor dessa discussão e no momento em que há tanto impacto da decisão do Supremo por conta da soltura do Lula, não seria boa.

Se ficar como uma tentativa de fazer com que o Lula ou o José Dirceu voltem a cumprir pena, é um mau começo. Se entrar o interesse dos parlamentares que estão prestes a serem julgados na segunda instância, também é ruim. Isso mancharia a legitimidade dessa decisão que já está muito contaminada pela instabilidade da decisão do Supremo Tribunal Federal, que é inexplicável e inaceitável uma Corte Constitucional mudar em tão pouco tempo várias vezes de opinião a respeito de uma questão tão importante.

Ela passou a ser entendida como uma tomada de posição no momento político, dado que o Supremo não cumpriu seu papel como deveria. Então, fazer uma mudança institucional apenas para punir ou permitir que alguém escape de punição não é bom. Tem de ser uma discussão de direito, filosófica, doutrinária.

Não sei se o Congresso está preparado para essa discussão sem subjetivar, sem fulanizar a decisão. Seria melhor deixar para outro momento em que seja possível fazer uma discussão doutrinária.

Estadão