Estudo sobre antipetismo revela doutrinação de evangélicos

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Foto: Reprodução

Preocupado em identificar antipatias partidárias, e não necessariamente as simpatias, como captavam os institutos de pesquisa do país, o cientista político Cesar Zucco, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape)/Fundação Getúlio Vargas, no Rio, pesquisa em detalhes o antipetismo. Em entrevista ao Valor, Zucco, que já foi professor titular em Princeton, explica as conclusões recentes a partir da atualização de estudos que embasaram o livro “Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil”, escrito em parceria com o professor David Samuels e lançado em 2018.

Com base em microdados de pesquisas do Datafolha e Ibope, e sobretudo em surveys acadêmicos, os pesquisadores concluíram que de 1989 até aproximadamente 2014, os petistas e os antipetistas eram grupos com grande semelhança sociodemográfica. A partir desta data, no entanto, antipetistas se tornam mais ricos e mais escolarizados. A diferenciação crucial vem em 2018, com a predominância de evangélicos entre os antipetistas, conclusão mais recente comprovada por Zucco. “A coalizão antipetista é a dos mais ricos, mais escolarizados e também evangélicos.” Questionado se o crescimento gradual do antipetismo inviabilizaria uma vitória eleitoral do PT nos próximos anos, Zucco sugere que tudo dependerá da economia e da capacidade do partido tentar fazer pontes com o heterogêneo universo das igrejas evangélicas. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O percentual dos votos válidos no segundo turno da eleição presidencial entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, em 2018, (55% x 45%) reflete o universo de antipetistas e petistas, respectivamente?

Cesar Zucco: Fizemos um trabalho quase arqueológico de levantar pesquisas desde 1989 que nos deem algumas informações sobre isso. Certamente o resultado eleitoral é diferente do que a gente chamaria de qualquer definição de petismo/antipetismo. O primeiro ponto, que abordamos no livro, é que o antipetismo não é um fenômeno recente. Há pessoas que dizem “eu não gosto do PT” desde a origem do PT. Há momentos, nos anos 90, em que havia mais antipetistas do que petistas (ver gráfico ). Em outros momentos, como em 2012, tem um pico do petismo, e uma queda grande com o impeachment da Dilma [Rousseff]. Depois o petismo se recupera, e o antipetismo retorna forte agora em 2018. Ou seja, isso é um processo de longo prazo, não apenas da dinâmica eleitoral de agora. Achamos, e juntamos dados no detalhe, que o significado de antipetismo vem mudando com o tempo.

Valor: De que maneira?

Zucco: Nos anos 90, o antipetismo era algo ligado a “medo da baderna”. Com o mensalão, em 2005/2006, passou a ser a relação com corrupção. Agora, estamos tentando descobrir o que é. Embora seja um fenômeno que cresce desde a origem do PT, o antipetismo passa a ter encarnações diferentes. A parcela do eleitorado que se identifica com um lado ou com o outro vem num crescendo. Em 1990, 12% das pessoas eram petistas ou antipetistas. Em 2018 esse número chega a 45%. Voltando à sua primeira pergunta: 55% + 45% [os votos válidos segundo turno] significaria que 90% das pessoas seriam ou petistas ou antipetistas, o que não é verdade. Você tem uma porcentagem grande ou de petistas ou de antipetistas, e no Brasil hoje não tem nenhum outro grupo que se compare a esses dois em termos de tamanho. Mas estamos falando de, provavelmente, no máximo 50% do eleitorado, com a combinação dos dois. Não diria, portanto, que o resultado de 55% versus 45%, da eleição, reflete, necessariamente, antipetismo e petismo.

Valor: Pode-se concluir, portanto, que a polarização está crescendo.

Zucco: A polarização eleitoral e afetiva. Antes de 2014, embora existisse grande porcentagem de pessoas que fossem petistas e antipetistas, a gente não via a radicalização dessa diferença. Por exemplo: há coisas estáveis ao longo de todo o tempo, quando a gente olha os surveys desde 1989. Desde o início, petistas tendem a apoiar mais a democracia do que antipetistas. Isso é estável. Ambos os grupos, tanto petista quanto antipetista, têm mais interesses em política do que os que não- partidários. Você tem leve predominância de petistas participando de sindicatos, associações e ativismo, em geral. O que também é estável ao longo do tempo. Há uma grande divergência na avaliação do Lula: os petistas o têm sempre em altíssima conta e os antipetistas em baixíssima. E há algumas coisas que vêm mudando.

Valor: O que, por exemplo?

Zucco: A idade. Os petistas estão envelhecendo, constantemente, desde o início. Em 1989 eram muito mais jovens que os não-partidários e agora são mais velhos. Os petistas eram proporcionalmente mais homens, e hoje são igualmente homens e mulheres. Os petistas sempre foram menos brancos, mais pardos e pretos do que os não-partidários, que sempre foram mais brancos. E é interessante isso, mas até 2002 corrupção não era um problema. Em 2006 e 2010 os dois grupos passaram a dizer que corrupção era um problema. Só a partir de 2014 é que a corrupção passou a ter diferenciação grande entre os dois grupos. Se você pergunta para antipetistas se corrupção é um problema, eles vão dizer que sim, quase todos. Os petistas vão dizer que não. Tem a mudança de idade, demográfica, e a percepção de corrupção. E há coisas que, de 2014 para 2018 mudaram muito.

O cientista político Cesar Zucco, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape)/Fundação Getúlio Vargas, no Rio, pesquisa em detalhes o antipetismo.
Valor: Poderia explicar em detalhes essas mudanças dos 2 grupos?

Zucco: Primeiro, a relação renda e educação. Os dois grupos eram parecidos, petistas e antipetistas. Ambos eram mais ricos, mais bem educados [escolarizados] do que os não-partidários do Brasil, que é a maioria da população. Hoje, os antipetistas são bem mais ricos e bem mais escolarizados. Em 1989, a proporção de petistas de alta renda era quase 40%. E mais ou menos também 40% de alta renda eram antipetistas. Em 1994, 2002, 2006 eles ainda são muito parecidos. Em 2002 começam a se separar. Mas a partir de 2010, os antipetistas vão ficando cada vez mais ricos e mais escolarizados. Em 2014 e 2018, os petistas começam a ficar mais parecidos com os não-partidários, enquanto os antipetistas são mais escolarizados. Agora, o que mais me impressionou é a religião.

Valor: E que conclusões suas pesquisas mais recentes mostram sobre esse fenômeno da religião e a polarização petismo x antipetismo?

Zucco:Não tinha diferença nenhuma em 2002, 2006, 2010. Em 2014 havia pouca diferença entre os dois grupos: os petistas eram um pouco menos evangélicos do que os antipetistas, mas ninguém destoava muito da média dos não-partidários. Todos os grupos eram mais ou menos iguais. Em 2018 acontece uma diferença enorme. Tem um número muito grande de evangélicos entre os antipetistas. Muito mais alto do que o de petistas. E também, pela primeira vez na história, acontece a identificação com a direita. O interessante, no geral, é o seguinte: os antipetistas são mais escolarizados, agora, e proporcionalmente mais ricos. Mas também são proporcionamente os mais evangélicos. Em geral, os evangélicos estão concentrados em populações mais pobres. Há bastante contradição nisso, é uma coalizão antipetista estranha. Antes, do ponto de vista sociodemográfico, eram pessoas dos mesmos grupos. A partir de 2014 há uma modificação sociodemográfica nesta polarização, que faz a coalizão antipetista dos mais ricos, mais escolarizados e também evangélicos. A oscilação de renda e educação começa a aparecer só em 2014. A questão dos evangélicos é um ingrediente trazido nos últimos dois anos. Entre os mais ricos, a proporção de antipetistas chega a quase 60% – na eleição, depois caiu). Entre os brancos, cerca de 45%. Entre evangélicos, chegou a quase 50% e vem caindo. Houve uma polarização muito forte entre uma semana antes da eleição.

Valor: Olhando para a cara nova do antipetismo e a evolução disso, então pós-2018 mudou tudo?

Zucco: A polarização petistas e antipetistas, eleitoral, no sentido quem gosta do PT e quem não gosta do PT, é uma constante que acontece e aumenta desde 1989. Só que eram pessoas mais ou menos parecidas, do mesmo nível social e mesmo nível de escolaridade. Petistas e antipetistas tinham divergências sobre prioridades, conceito de democracia, a prisão do Lula, etc, mas não eram extremamente diferentes. Mas isso de 2014 para cá aumentou muito, seja a questão renda/educação, seja em relação à questão religiosa. Ou seja, é um copo meio cheio, meio vazio. Temos uma continuidade do processo de polarização eleitoral, que vem de muito tempo, mas a gente tem um significado possivelmente diferente nos últimos anos.

Valor: E o que explicaria isso? Pode-se afirmar que há ascensão do antipetismo ao longo das décadas ou apenas que ele se reconfigura?

Zucco: Podemos dizer que ocorrem as duas coisas. Como diriam os economistas, tanto na margem extensiva quanto na margem intensiva. Tem mais gente antipetistas e eles parecem ser mais antipetistas do que antes.

Valor: Mas podemos trabalhar com percentuais fixos de petismo e antipetismo ou, como alertou inicialmente, os processos eleitorais são mais intensos e distintos?

Zucco: Veja, no dado do Ibope mais recente [dezembro de 2019], temos 35% antipetistas e 22% de petistas. Ou seja, cerca de metade da população. Parecido com o gráfico em que mostro os grupos de petismo e antipetismo, em que a soma dos dois grupos chega perto de 50%. Quase metade do eleitorado ou é uma coisa, ou é outra. É importante mencionar que nenhum outro partido chega nem perto do universo desses dois grupos [petismo x antipetismo]. O que existe é PT e anti-PT. Não tem mais ninguém.

Valor: Considerando esse aumento nas margens extensiva e intensiva, o que explicaria, na sua opinião, a ascensão do antipetismo?

Zucco: Dado que os ricos e escolarizados são minoria, acho que não se explica por aí. Essa ligação religiosa e a pauta de costumes é o que está mantendo isso. Digamos que é um elemento novo que está fortalecendo muito essa dinâmica e não existia antes. Essa pauta de costumes tão radicalizada nós nunca tivemos antes no Brasil. E isso faz algum sentido, porque o governo joga por aí. Teoricamente, no eleitorado que o PT vinha tendo, os mais pobres deveriam ter votado mais no partido, mas não votaram por causa dos evangélicos. O alinhamento das igrejas parece ser uma coisa importante. Não sabemos se é uma coisa orgânica e que terá continuidade, porque as igrejas já estiveram de um lado e do outro. O governo está sinalizando que quer manter esse grupo na coalizão [antipetista]. Não sou especialista em religião, mas as próprias igrejas não eram tão radicais antes. Não sabemos muito bem se é só uma oportunidade de mercado, se é fruto do embate entre catolicismo e evangelismo…

Valor: Uma conclusão óbvia então é que o neopentecostalismo crescente tem relação direta com o antipetismo em ascensão?

Zucco: A maior parte dos evangélicos são pentecostais e neopentecostais, a gente não consegue separar os tradicionais dos não-tradicionais.

“Tem quase metade da população que não é petista nem antipetista. Eles votam com o afeto, com a economia”

Valor: Os partidários do centro, que hoje defendem uma terceira via no Brasil para fugir da polarização, alertam exatamente que metade da população não é nem petista nem antipetista, seriam os não-partidários, no caso. Mas pelo que as suas pesquisas apontam, esse centro penderia mais ao antipetismo. Pode-se concluir isso?

Zucco: A gente não sabe, pelo seguinte: grande parte desse pessoal que não é uma coisa e nem outra são os não-partidários. Em geral, eles não prestam atenção em política, têm menos instrução, não se mobilizam. Os residuais que são de outro partido é um universo muito pequeno. O grande grupo é de não-partidários. Eles não se declaram nem de um lado e nem de outro. O que essas pessoas pensam e querem, como se alcança essas pessoas, não está claro. Os partidos não têm uma ligação fácil com essas pessoas. Eles não estão na igreja, não estão nos sindicatos, não são trabalhadores formais… Muito provavelmente o que determina [o voto] é a economia, eu diria. Imagina-se que se a economia está melhor eles votam com o governo, se está pior votam contra o governo. A gente sempre pensa: como é que alguém pode estar à margem dessa polarização no Brasil hoje? Mas tem aí quase metade da população que, de fato, não é nem uma coisa, nem outra. Provavelmente eles não são nem petista, nem antipetista. Eles votam com afeto, com a economia.

Valor: Essa tendência crescente de antipetismo, caso supere os 40%, inviabilizará o PT nas eleições presidenciais dos próximos anos?

Zucco: Muitas coisas podem acontecer. O petismo hoje varia de 25% a 22%. Tem uma massa muito significativa de pessoas que ainda votam no PT. Vai depender um pouco do que farão esses 50%. Se as coisas estiverem ruins, economicamente, eventualmente o PT poderá mudar [o voto deles]. E, como a gente já viu, essa estratégia eleitoral de trazer os evangélicos mudou tudo o que a gente sabia de antipetismo. Há quatro anos ninguém anteviu isso claramente. Não é óbvio, portanto, que isso continuará na mesma direção. Inclusive o PT começa a fazer acenos sobre a necessidade de conversar com evangélicos, mas parte do partido acha que não vale a pena, que já é território perdido. Os evangélicos são um grupo crescente da população brasileira e, hoje, todos eles estão indo só para um lado. Mas isso não foi ainda contestado. Eles não foram sempre para esse lado. É um grupo muito difuso, com várias igrejas. É possível que algumas forças comecem a contestar esse espaço. Projetar para frente que vai continuar tudo igual é difícil.

Valor Econômico