Melhores filmes de 2019 abordaram desigualdade e revolta
Foto: Warner Bros
Terminou sendo a tendência do ano, esboçada em Cannes, confirmada em Veneza. Ao longo de 2019, e menos no Brasil, manifestantes foram às ruas protestar contra o estado do mundo. Desequilíbrio ambiental, desigualdade social. O cinema retratou o fenômeno. Bacurau, Les Misérables e Parasita, o vencedor da Palma de Ouro. Coringa, o antagonista de Batman, liberando a revolta surda que o transforma num incômodo que, finalmente, se revela uma liderança no mundo distópico. O Leão de Ouro.
No domingo, no Aliás, diversos pensadores refletiram sobre as mazelas sociais e políticas – sobre a distopia. O cinema fez isso o tempo todo no ano que se encerra. Nos blockbusters, Os Vingadores e a garota depositária da Força, a Rey de Star Wars Episódio IX, conseguiram reverter o quadro de horror e salvar a humanidade. Um sonho de cinema, numa temporada marcada pelo pesadelo. No Brasil e no mundo, houve sintonia.
Foi um ano difícil, em que a categoria foi criminalizada, num discurso marcado pelo achismo e pela falsidade ideológica. A categoria paga impostos que se transformam num fundo para o financiamento de filmes, mas o governo tentou, o tempo todo, indispor a sociedade com seus artistas, como se eles estivessem desviando dinheiro de educação, saúde, segurança para fazer suas obras pornográficas e ideologizadas. Quem diz isso é Luiz Carlos Barreto, cuja folha corrida de serviços prestados à cultura brasileira vem desde os anos 1950, no mínimo. Barretão atravessou os anos de chumbo da ditadura e nunca viu tanta dificuldade quanto agora, mas não desanima. “Quanto mais tentam destruí-lo, mais o cinema brasileiro resiste.”
Foi um ano de grandes filmes brasileiros, e o maior deles é Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A cidade do sertão riscada do mapa e os sertanejos que pegam em armas contra os gringos que vieram – por quê? – eliminá-los. Nenhuma complacência com o outro, nenhuma vontade de entendimento.
Ficção e documentário deram conta da manipulação em processo. Petra Costa, com seu discurso em primeira pessoa – ela, filha e neta de grandes empreiteiros –, está no Oscar com seu longa, Democracia em Vertigem, que expõe as incongruências do processo de impeachment. Susana Lira, em A Torre das Donzelas, mostrou outro viés. Deu voz à ex-presidente Dilma Rousseff e às mulheres que estiveram presas com ela, durante a ditadura. Entende-se melhor a intransigência de Dilma em negociar.
Cristiano Burlan narra outro processo. Em Elegia de Um Crime, volta-se para outro episódio traumático da própria vida – depois de Mataram Meu Irmão – e recria o assassinato da mãe, persegue seu matador. É um filme duro, cruel, e regenerador. Expõe o feminicídio que faz das mulheres vítimas preferenciais do machismo. Não apenas elas. Gays e trans. A Rosa Azul de Novalis fez a suprema provocação do ano – no Brasil da religião ideologizada, o personagem de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, crendo-se a encarnação do poeta romântico alemão, busca a inatingível rosa azul e encontra uma entrada para o sagrado. Isso para não falar do que, nas periferias, está ocorrendo com jovens negros e pobres – No Coração do Mundo, de Gabriel Martins e Maurílio Martins (Temporada, de André Luiz Oliveira estreia só no que vem). Assim como o empoderamento marcou 2018, com a Mulher-Maravilha, houve em 2019 Pantera Negra e os prêmios para Spike Lee no Oscar.
Apesar dos números amplamente favoráveis aos filmes internacionais, foi um ano muito rico para o cinema brasileiro. O cinema de gênero marcou presença, a discussão sobre diversidade abarcou questões de gênero e raça. Do mundo vieram os fenômenos Coringa e Parasita. A questão não é mais se Joaquin Phoenix estará entre os indicados para o Oscar, mas se finalmente ganhará o prêmio. Só se der a louca na indústria seu Coringa não estará entre as cinco maiores interpretações do ano.
Da mesma forma, é fava contada que Parasita estará entre os indicados para filme internacional. A dúvida, em termos, é se Bong Joon-ho, como no Globo de Ouro, concorrerá a melhor diretor. Sorte dos dois, Todd Phillips e Joon-ho, que Les Misérables tenha ficado para 2020 no Brasil. A urgência de Ladj Ly teria atropelado ambos.
Hostilizado pelo governo, o cinema brasileiro viveu um ano para lá de bom. Explica-se: o que chegou às telas em 2019 é fruto de trabalho dos anos anteriores. Não sabemos como será daqui para a frente. Em todo caso, constate-se, o ano foi brilhante. A começar pelos premiados internacionais, entre os quais destacam-se Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, ambos premiados no mais badalado festival de cinema do mundo, Cannes, na França.
A justo título, Bacurau tornou-se o filme do ano, e não apenas por seus prêmios e sua qualidade estética, mas por uma questão de timing, talvez até involuntária. Com sua fábula distópica de um futuro no qual partes do Brasil se tornam territórios de caça de países desenvolvidos, Bacurau levantou enorme polêmica simplesmente pelo fato de ter colocado em pauta a resistência popular. Ao contestar a “índole pacífica do povo brasileiro”, como dizem os políticos, tal hipótese, ainda que ficcional, despertou a ira de bem-pensantes patrícios.
Já Vida Invisível aborda a questão feminina através da história de duas irmãs que não conseguem realizar suas potencialidades, vítimas do machismo brasileiro no Rio dos anos 1950. Baseado no livro de Martha Batalha, o filme foi indicado pelo Brasil para concorrer a uma das vagas do Oscar, mas não chegou lá. Isso em nada o diminui. É de uma beleza terna e de uma tristeza infinita. Fernanda Montenegro entra nos 15 minutos finais e arrasa.
A produção documental também bombou. Entre dezenas de lançamentos, destaco Democracia em Vertigem, de Petra Costa, presente na shortlist da categoria no Oscar. Ainda pode disputar a estatueta. É uma leitura bastante pessoal – e talvez por isso mesmo muito interessante – de todo o processo que começou com as manifestações em 2013, desestabilizou governos, levou ao impeachment de Dilma, à prisão de Lula, e culminou com a eleição em 2018 de um político de extrema-direita. Um retrato da tragédia brasileira.
Torre das Donzelas, de Susanna Lira, relaciona-se com o tema, abordando o tempo da ditadur através de memórias de presas políticas.
Outro doc, Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, mostra uma faceta oculta do “empreendedorismo” à brasileira. Os habitantes de Toritama, no interior de Pernambuco, ralam o ano inteiro na fabricação de jeans, em condições insalubres e inumanas, e tiram uma folga para o carnaval, quando vendem tudo e vão à praia se divertir alguns dias. A Quarta-Feira de Cinzas assinala o início de novo ciclo.
A exemplo de Bacurau, outro filme pernambucano, Divino Amor, projeta uma distopia brasileira para daqui a poucos anos. Desta vez, na imaginação de Gabriel Mascaro, temos uma república evangélica na qual o culto à Bíblia e à carne se equivalem. Uma crítica corrosiva ao fanatismo religioso contemporâneo. Ainda bem que os pastores não o viram, senão causaria mais escândalo que o especial de Natal do Porta dos Fundos.
Essas breves linhas deixam de fora muita coisa boa. Por exemplo, o intimismo político do belo filme mineiro Temporada, de André Novais Oliveira. Domingo, de Felipe Barbosa, criativa história de uma reunião de família no dia em que Lula venceu a eleição. A pegada forte de Mormaço, de Marina Meliande, e a história da expulsão de moradores para a Olimpíada no Rio. Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes, com sua deslumbrante estética beirando o kitsch, um Querelle à brasileira. A sempre rica imaginação visual de Edgard Navarro em Abaixo a Gravidade.
Pela diversidade estética e temática, pelo desejo de tematizar o status quo, indo além dele, o cinema brasileiro tem cumprido sua missão de forma muito efetiva.