Odebrecht corrompe desde a ditadura, diz delator

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Foto: Reprodução

Preso por dois anos e cinco meses em Curitiba, condenado a mais de 30 anos de cadeia por corrupção, o engenheiro Marcelo Odebrecht, hoje com 51 anos, virou o símbolo da Operação Lava-Jato. Nunca antes um empresário tão poderoso havia sido alvo de uma ação tão dura. Em sua casa, em São Paulo, Odebrecht recebeu O GLOBO por duas ocasiões. Com limitações legais para falar sobre processos em andamento e em meio à disputa familiar sobre o futuro do grupo, ele contou como a empresa tinha a prática de fazer pagamentos não contabilizados — não apenas para campanhas eleitorais —, detalhou seu papel na “conta italiano”, exclusiva de recursos para o PT e o Instituto Lula. “Sempre fomos tolerantes com o caixa dois”, disse. “A crença de que os fins justificam os meios foi um grande pecado”.

Em 2010, o Brasil estava crescendo 7,5%, havia ultrapassado a crise financeira de 2008 e tudo indicava que seria a grande década brasileira. O que deu errado com o Brasil?

O Brasil cresceu? Sim, mas tudo ajudava: havia o bônus demográfico, os preços das commodities estavam lá em cima, o pré-sal apareceu, nós tínhamos um líder popular, agregador, um verdadeiro chefe de torcida. Por outro lado, abdicamos das reformas estruturais que precisávamos. O governo era onipresente em toda a economia. Era um crescimento que embutia várias distorções que o tornavam insustentável.

Em 2010, a Odebrecht era líder no setor de infraestrutura, mas também estava em petroquímica, bioenergia, defesa, construção naval. Aquela ambição era sustentável?

A maior parte do nosso crescimento e diversificação era sustentável: a internacionalização da companhia que vinha desde os anos 1980, a Braskem, óleo e gás… mas nos aventuramos no setor de etanol a pedido do governo, e tivemos muito prejuízo, assim como no estaleiro na Bahia. O estádio do Itaquerão foi uma dessas missões em que perdemos muito dinheiro.

Para os seus negócios, fazia diferença contratar o ex-presidente Lula para dar palestras?

Sim, fazia diferença, mas nós tínhamos uma situação ambígua. Por um lado, Lula tinha uma enorme influência e era muito querido, tanto na América latina como na África. Por outro lado, ao contrário da maior parte das nossas competidoras, nós já estávamos presentes nesses países. Neste sentido, a presença de Lula nos trazia algum desconforto porque a intenção dele era abrir o mercado para todas as empresas brasileiras. Nós então procurávamos influenciar as pessoas no entorno do Lula, e preparávamos notas detalhando a nossa operação para que no momento em que ele fosse defender as empresas brasileiras, não o fizesse de uma maneira tão genérica que pudesse passar a impressão ao governo local que estava despriorizando a única empresa brasileira que já estava presente naquele país há muito tempo.

A Odebrecht era uma das “campeões nacionais” da política de financiamento do BNDES?

Discordo. Não havia uma preferência nem de Lula, nem de Dilma para fazer tal empresa crescer. O que havia eram políticas públicas influenciadas e disputadas por vários setores e empresas. A Odebrecht já era, desde a década de 1990, a maior exportadora de serviços do Brasil. No governo Lula houve uma boa política pública de incentivo à exportação de serviços e nós, pela nossa presença internacional, fomos os maiores beneficiários. Jorge Paulo Lemann: ‘O Brasil precisa brigar menos e investir mais em educação’

Havia algum tipo de esquema de corrupção na liberação dos financiamentos do BNDES?

Que eu tenha conhecimento, nunca houve esquema de corrupção no BNDES. Apenas no contexto de uma negociação bilateral para ampliar uma linha de crédito entre o governo de Lula e de outro país, negociação da qual a Odebrecht nem era parte, houve um pedido de apoio financeiro ao PT, e que é objeto de uma ação penal em andamento (referência ao inquérito sobre Angola).

Em dez anos, a Odebrecht passou de um faturamento acima de R$ 50 bilhões para uma empresa em processo de recuperação judicial. O senhor se sente responsável pelo que aconteceu?

Tenho minha responsabilidade. Nem eu, nem outros líderes da empresa nos eximimos. Muitos de nós tivemos a coragem de assumir nossos erros, e estamos pagando por isto.

O que quebrou a Odebrecht?

É fácil dizer que o que quebrou a Odebrecht foi a Lava-Jato. Sim, a Lava-Jato foi o gatilho para nossa derrocada, mas a Odebrecht poderia ter saído dessa crise menor, mas mais bem preparada para um novo ciclo de crescimento sobre bases até mais sustentáveis. Só que nós não soubemos conduzir o processo da Lava-Jato. A Odebrecht quebrou por manipulações internas, não apenas pela Lava-Jato.

Por partes: por que a Odebrecht demorou tanto a fechar um acordo de leniência, depois de quase todas as concorrentes?

Éramos uma empresa extremamente descentralizada. Cada líder de um projeto tinha autonomia para tomar suas decisões e nem sempre os demais executivos conheciam detalhes de outra operação. Ninguém sabia de fato o que o outro havia feito de errado, e quando a Lava-Jato começou muitos se omitiram. Havia ainda uma preocupação em não trazer para o âmbito do inquérito da Lava-Jato temas e pessoas que estavam fora da investigação de Curitiba, que, devemos lembrar, era inicialmente exclusiva sobre acontecimentos ligados à Petrobras. Não queríamos trazer para a Lava-Jato a nossa relação política, que não necessariamente envolvia toma lá, dá cá, mas que podia ser mal explorada, como aliás acabou sendo.

“A informação que me davam (na cadeia) é a de que a empresa não estava pronta para um acordo (com a Justiça). Depois vim a descobrir que a informação que levavam para a empresa é a de que quem não estava disposto a colaborar era eu”

Mas, já em outubro de 2015 (três meses após a prisão), eu e outros executivos presos em Curitiba entendíamos que deveríamos colaborar com a Justiça. Nesse momento foi que começaram as manipulações internas, até pela minha dificuldade de me comunicar estando preso. Assim, a informação que me davam é a de que a empresa não estava pronta para um acordo. Depois vim a descobrir que a informação que levavam para a empresa é a de que quem não estava disposto a colaborar era eu.

Quais os interesses dessa desinformação?

Algumas pessoas da Odebrecht à frente das negociações com a força-tarefa não desejavam assumir seus erros. Contudo, mais do que a postergação das negociações com Curitiba, o que mais prejudicou a Odebrecht foi a maneira como se conduziu o acordo com o Departamento de Justiça dos EUA.

Por que a Odebrecht precisava fechar acordo nos EUA?

Quando uma empresa que atua em vários países decide colaborar com a Justiça, ela tem que conduzir um acordo global, conciliando o timing em cada país. A partir do momento em que a Odebrecht decidiu fechar acordo no Brasil, precisava colaborar também nos Estados Unidos, na Suíça, porque uma parte dos pagamentos indevidos passaram por lá, mas também nos demais países em que atuávamos: Peru, Panamá, República Dominicana, Equador… Por isso, o negociado com a força-tarefa de Curitiba pressupunha um sigilo em relação aos fatos no exterior.

Houve, porém, interesses escusos dentro da Odebrecht e da Braskem de pessoas que sabiam que seriam expostas se ocorresse uma investigação independente. Essas pessoas anteciparam o fechamento do acordo nos EUA baseado em relatos parcialmente manipulados por elas mesmas. O Departamento de Justiça dos EUA divulgou esse acordo e, de uma hora para outra, não apenas nossos funcionários em outros países passaram a correr um enorme risco, como perdemos entre US$ 5 bilhões a US$ 10 bilhões de dólares em ativos. Sofremos arrestos, intervenções, bloqueios de bens e não tivemos chance de negociar um acordo em bases normais. E US$ 5 bilhões era dinheiro suficiente para pagar várias Lava-Jato. Ou seja, se isso não tivesse ocorrido, a Odebrecht hoje estaria viva.

Quem na Odebrecht fez isso?

Isto deve ser objeto de investigação por parte das autoridades, a quem caberá denunciar os responsáveis.

O caixa dois era necessário?

Se eu disser que era necessário, estaria mentindo. Havia empresas que corretamente não aceitavam fazer. Nós, porém, sempre fomos tolerantes com o caixa dois. E não faltavam motivos para justificá-lo. Seja porque o político tinha uma referência de orçamento oficial de campanha que não queria ultrapassar, seja porque o político não queria aparecer recebendo muito dinheiro de uma empresa com interesses na região, ou cujos projetos ele defendia.

“Se eu disser que era necessário (pagar no caixa dois), estaria mentindo. Havia empresas que corretamente não aceitavam fazer. Nós, porém, sempre fomos tolerantes com o caixa dois”

A própria empresa, por sua vez, também não queria aparecer, porque havia uma criminalização na mídia com relação às contribuições oficiais de campanha. Posso me estender aqui por inúmeras justificativas que nos levavam a optar pelo caixa dois e todas elas têm um erro comum: tiravam a transparência e a legitimidade de nossas relações. Mesmo que grande parte das relações políticas não envolvessem um toma lá, dá cá, a existência do caixa dois tirava da sociedade o direito de fazer um julgamento.

Quando a Lava-Jato explodiu, descobriu-se que o volume de recursos de caixa dois da Odebrecht era tamanho que havia um setor específico, o famoso Departamento de Operações Estruturadas.

Isso é folclore. Esse tal departamento de propina nunca existiu. A verdade é menos espetaculosa. Desde os anos 1980, bem antes de meu ingresso na empresa como estagiário, havia pessoas na Odebrecht que apoiavam os executivos na realização de pagamentos não contabilizados. Eram bônus não declarados para executivos, pagamentos em espécie a fornecedores, especialmente em zonas de conflito, investimentos em que não queríamos aparecer, caixa dois para campanhas, e eventualmente até propinas. Essas pessoas iam se sucedendo, e todas eram identificadas por algum programa dentro da Odebrecht para ocultar sua real função, sendo que as últimas pessoas se autodenominaram responsáveis por operações estruturadas.

Não existia o departamento de operações estruturadas?

Existiam pessoas que faziam pagamentos não contabilizados, sendo que, em algum momento, sem que fosse de conhecimento meu ou de qualquer outro executivo, elas começaram a criar sistemas para controlar estes pagamentos. Uma maluquice total! Quanto à natureza desses pagamentos, só os executivos que os aprovaram é que podem responder e definir o que pode ser caracterizado como propina. Não estou negando o fato de que houve pagamento de propinas, só estou dizendo que não era nem de longe na dimensão que foi divulgada. E a prova de que as propinas eram uma parcela mínima de nossos pagamentos não contabilizados é que a grande maioria das ações judiciais fruto das delações da Odebrecht foi direcionada para a Justiça Eleitoral.

Mas as demais empresas não tinham a sofisticação da Odebrecht

A maior parte das empresas se utilizavam de notas frias. Como éramos extremamente descentralizados, foi tomada uma decisão na Odebrecht lá no início dos anos 90 de que, para não contaminar toda a contabilidade da empresa com notas frias, faríamos uma geração mais planejada de caixa 2. No Exterior, esse caixa 2 seria colocado em contas offshores à disposição dos nossos executivos. Quando precisavam, esses executivos solicitavam às pessoas que cuidavam desse caixa 2 para fazer os pagamentos não contabilizados. Nenhum executivo da empresa, eu entre eles, sabia que havia registros destes pagamentos e várias pessoas podiam autorizar estes pagamentos não contabilizados de forma descentralizada.

Mas o volume de dinheiro em caixa dois…

Representavam menos de 1% do nosso faturamento. Não sejamos hipócritas: era bem usual no mundo empresarial as empresas terem até 1% de seu faturamento direcionado para pagamentos não contabilizados.

De acordo com as investigações da Lava-Jato, o senhor administrava a conta Italiano, usada exclusivamente para o PT. Como ela surgiu?

Prefiro não entrar no caso específico de temas que fazem parte de ações penais em andamento. De maneira geral, era um registro de um lado dos valores de contribuição que eu e meu pai acertávamos com os governos do PT, e de outro dos pagamentos que eles pediam. Era uma conta fictícia na qual debitávamos os pagamentos que nos eram solicitados primeiro por Antonio Palocci e depois por Guido Mantega para atender os interesses do PT e, dentro dos interesses do PT, do Instituto Lula.

Qual a lição para o senhor desse período?

Nós, da Odebrecht, cometemos nossos dois grandes pecados: a falta de transparência do caixa dois, e a crença de que os fins justificavam os meios.

Qual é o futuro da Odebrecht?

Primeiro temos que vencer o desafio da recuperação judicial, e levantar o moral de nossa tropa, voltando a valorizar a nossa cultura empresarial. Tinha um antigo diretor nosso que dizia: “Enquanto tiver bala, atire”. E é isso que temos que fazer.

A partir da Lava Jato, o Congresso proibiu as contribuições empresariais. Isso limita o caixa 2?

Um dos pontos positivos dessa década é que sairemos dela com menos governo. Quanto menos o empresário tiver que viajar para Brasília para defender seus interesses, quanto menos governo tiver dificultando a vida do empresário, – aquela dificuldade criada para vender facilidade – menos problemas teremos. A melhor maneira que você tem de evitar de ter relações indevidas entre a iniciativa privada e o governo é ter menos governo.

O Globo