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Paraisópolis, a história da 2ª maior favela de SP

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Foi em um campo de 10 km² em uma região quase inabitada na zona sul de São Paulo que Lourival Clemente da Silva enxergou uma oportunidade de construir uma nova vida.

Ele havia recém chegado de Alagoas, em 1964, e não tinha onde morar. Lourival decidiu construir naquele loteamento de alto padrão abandonado, onde até então só havia mato, plantações, pântanos e colinas, uma das primeiras casas de madeira, para viver com a mulher e os filhos.

Algum tempo depois, ele fez outra para a sogra. E mais outra para os pais. E mais algumas para alugar e revender. Ali, Lourival virou o Louro, e aquele campo onde ele fixou residência, Paraisópolis, a segunda maior favela da cidade.

Ali vivem hoje cerca de 100 mil pessoas, e Paraisópolis continua a crescer mesmo com graves problemas de saneamento, mobilidade e segurança, como na semana passada, quando uma ação da Polícia Militar no Baile da 17 terminou com nove jovens mortos.

Muitos dos seus moradores hoje são da terceira, quarta ou até quinta geração das famílias dos primeiros moradores.

O filho de Louro, Gilson, de 49 anos, já nasceu na comunidade e viu ela se transformar. Ele diz estar acostumado com os congestionamentos nas vias estreitas da favela, onde carros disputam o espaço com motos, ciclistas e pedestres que não cabem nas calçadas apertadas. Mas lembra que tudo era bem diferente quando era criança.

“Paraisópolis era uma enorme fazenda. As ruas eram todas de terra. Tinha só seis carros. Para ir até a casa da minha vó, a duas quadras de distância, atravessava um bananal e um cafezal. Havia um grande pântano onde hoje é um supermercado. E o cemitério do Morumbi ficava num matagal”, relembra.

Do outro lado do rio

Paraisópolis fica em uma região que ainda era uma zona rural da cidade no início do século passado. O terreno da Fazenda do Morumbi foi então dividido em 1921 em 2,2 mil lotes pela União Mútua Companhia Construtora e Crédito Popular S.A.

Joildo Santos, diretor da Agência Paraisópolis, ONG que mantém um dos principais acervos da memória da comunidade, conta que propagandas de jornal da época anunciaram as vendas do “Loteamento Paraizópolis”. Na época, o nome do local ainda era escrito com um “z” no lugar do “s”, e as fotos do anúncio mostravam casas de alto padrão de estilo europeu com quintal na frente.

Santos afirma que os lotes até foram vendidos, mas os donos nunca os ocuparam, e a região permaneceu deserta, salvo por algumas outras fazendas.

Um dos motivos foi a característica geográfica da região, diz Angélica Benatti Alvim, diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“O loteamento apresentou problemas já de cara, porque é uma região muito íngreme, cortada por alguns córregos importantes, o que fez com que algumas áreas fossem impossíveis de se ocupar e urbanizar”, diz Alvim.

Em áreas com grandes declives, é mais complexo implantar um sistema viário ou redes de água e esgoto. À falta de infraestrutura, somou-se o fato de a construção de uma casa em locais assim ser mais cara.

“Além disso, era longe, no meio do mato, em uma zona de fronteira de São Paulo. Ficava do outro lado do rio Pinheiros, quando ainda não tinham sido construídas as pontes que hoje ligam uma margem à outra. Era uma viagem chegar no Morumbi”, diz o arquiteto urbanista Valter Caldana, professor da Mackenzie.

A área só começaria a ser ocupada a partir dos anos 1950, de maneira informal. Nesta época, São Paulo se industrializava e recebia muitos imigrantes pobres do interior do Estado, de Minas Gerais e do Nordeste.

Santos diz que a maior parte desses imigrantes se mudou para a região para trabalhar na construção civil e em grandes projetos como os do hospital Albert Einstein e do estádio do Morumbi.

“As pessoas vinham trabalhar e traziam parentes. A região começou a ser povoada e esse processo ganhou força nas duas décadas seguintes, quando começou a ter a ‘cara’ que tem hoje”, diz Santos.

A construção de prédios no Morumbi criou mais empregos e tornou a região ainda mais atraente. A presença de muitas famílias de classe média e média alta criou uma série de empregos domésticos e de prestação de serviços.

“É um momento de crescimento muito intenso de São Paulo, quando a cidade começa a ganhar ares de metrópole. Mas com um modelo de desenvolvimento que não deu oportunidade para os recém-chegados se instalarem formalmente na cidade”, diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

“Paraisópolis começa como uma ocupação, mas depois surge um mercado paralelo de compra e venda de terrenos em Paraisópolis e outras regiões para atender essa demanda oferecendo um produto de quinta, irregular, para quem tinha pouca ou nenhuma renda.”

Clima bucólico

Com o tempo, Paraizópolis virou Paraisópolis – e também mudou a vista da janela da casa de Louro, conforme mais pessoas chegaram para morar ali nos últimos 50 anos.

“Antes, dava para ver o matagal em volta. A gente até conseguia ver os meninos jogando bola no campo. Mas foram erguendo as casas, e hoje minha mãe não vê mais nada”, afirma Gilson.

Gilberto, um dos quatro filhos de Louro, conta que seu pai viajou para São Paulo num pau de arara com a mulher grávida para trabalhar como pedreiro.

“Mas ele só trabalhou seis meses porque não tinha prática. Quando ele foi demitido, comprou uma carroça e passou a vender porco salgado nas ruas. No ano seguinte, ele comprou uma venda de um senhor português que foi morto por um cliente dentro do comércio em Paraisópolis e a chamou de Mercado do Louro”, diz Gilberto, que hoje cuida com a família do mercado criado por seu pai, que faleceu há cinco anos após um infarto.

Os filhos de Louro contam que quase ninguém queria morar em Paraisópolis por conta da dificuldade de acesso e a estrutura precária. Os grandes morros eram uma barreira até para os caminhões que faziam entregas na região.

Em dias de chuva, era necessário amarrar correntes nas rodas dos carros ou esvaziar os pneus para conseguir andar na lama que se formava, enquanto as crianças e trabalhadores envolviam os pés em sacolas para não sujar os sapatos.

Gilson lembra que, em sua infância, a região tinha clima bucólico. “Tínhamos córregos limpos e, em um deles, havia uma criação de carpas. A gente fazia pequenos barcos para passear e na época da chuva a gente via um belo arco-íris no rio Pinheiros por cima das copas das árvores. Foi uma época que poucos viram”, relembra ele com saudade.

Naquela época, Louro começou a construir um barraco de madeira para a sogra morar. Mas, antes de o aviso chegar a Alagoas, ele vendeu o imóvel para outra família. Louro percebeu então que poderia ganhar dinheiro vendendo e alugando barracos.

Gilberto diz que seu pai também notou que a maior parte das famílias era muito pobre e doou mais de 40 barracos na comunidade. Hoje, há um projeto na Câmara Municipal de São Paulo para batizar um parque em homenagem a Lourival Clemente.

Urbanização

Joildo Santos conta que, a partir do final da década de 1970, começou a haver uma pressão, por meio de uma série de processos na Justiça, para que as famílias fossem expulsas da área. Ele estima que 40 mil pessoas já morassem em Paraisópolis na época.

Alvim diz que foi elaborado na época um plano de ocupação da região com residências unifamiliares, como já havia ocorrido no Morumbi, e que previa a desapropriação de quem já vivia ali.

“A Prefeitura tinha cinco anos para executar, mas nunca fez. Nada nunca foi pra frente ali em Paraisópolis. Ao ignorar o problema em vez de lidar com ele, o efeito foi o contrário, e a ocupação se intensificou”, afirma a arquiteta.

A comunidade cresceu de forma desordenada. As casas eram construídas sem acabamento e ampliadas aos poucos, com o tempo.

O diretor da Agência Paraisópolis diz que o início da urbanização da favela, com a construção de postos de saúde e escolas, dificultou a remoção das famílias do local.

Paraisópolis nunca chegaria a ter grandes áreas desapropriadas, como ocorreu com outras favelas da região central de São Paulo, com exceção de alguns trechos que deram lugar a grandes avenidas.

A partir dos anos 1980, houve uma mudança na postura do poder público em relação às favelas, que, em vez de serem eliminadas, passaram a ser urbanizadas

“Começaram a levar uma infraestrutura parcial de água, esgoto e energia, mas acho que não atendia a 20% da área. A população ali, com o mercado imobiliário pujante no entorno, foi crescendo e se adensando cada vez mais”, afirma Alvim.

Paraisópolis posteriormente também foi asfaltada e ganhou iluminação pública. A partir do fim dos anos 1990, começou a trocar os barracos de madeira por casas de concreto.

Mas até hoje não há ali nenhum parque, sala de cinema ou biblioteca públicos.

Explosão habitacional e violência

O número de moradores cresceu mais intensamente nos anos 1990, quando outras favelas da cidade foram eliminadas e quem vivia nelas foi viver em Paraisópolis.

Mas, rodeada por prédios, casas e condomínios de alto padrão, a favela não podia mais se expandir para os lados. Para acomodar quem chegava e as famílias que se multiplicavam, a saída foi ocupar cada espaço disponível e crescer para cima.

“As pessoas passaram a criar um segundo, terceiro ou quarto andar, não só para ser uma opção de moradia para parentes e filhos que constituem um novo núcleo familiar, mas também para alugar, como uma fonte de renda. É um fenômeno generalizado nas favelas do Brasil”, diz Rolnik.

Em meio a este processo, Paraisópolis tornou-se um exemplo incomum entre as favelas de São Paulo.

“Os bairros e favelas costumam se formar nas zonas periféricas, onde a terra é mais barata e há mais espaços disponíveis. Isso faz com que haja grandes distâncias entre ricos e pobres. Mas Paraisópolis é muito visível aos olhos da riqueza”, diz Caldana.

Paraisópolis também é excepcional por seu tamanho, explica Rolnik. “A cidade tem cerca de 1,6 mil favelas. São muitas, mas pequenas”, diz a urbanista.

Outra exceção, tanto pela proximidade com áreas consideradas nobres quanto por seu número de habitantes, é a comunidade de Heliópolis, também na zona sul de São Paulo.

Heliópolis tinha, de acordo com o censo de 2010, menos moradores do que Paraisópolis, mas os dados hoje estão defasados, e a Prefeitura de São Paulo a considera a maior favela da cidade, pela área que ocupa. Paraisópolis é a segunda, conforme este critério.

“Hoje, Paraisópolis não cresce mais atraindo imigrantes, mas com as próprias famílias que já estão na favela, que já estão na sua terceira ou quarta geração vivendo ali”, afirma Alvim.

Alvim aponta que o principal problema de Paraisópolis é a falta de continuidade das políticas públicas voltadas para a região.

“É claro que existem ali alguns problemas graves, como trechos dominados pelo tráfico, principalmente as áreas de maior insalubridade e de difícil acesso. Mas não bastam quatro anos de governo para resolver isso. É preciso um plano contínuo”, diz Alvim

Boa parte do que conseguem, como parquinhos infantis, biblioteca e eventos culturais, é graças à atuação de ONGs, empresas privadas ou pela união da própria comunidade.

Caldana destaca que a região vem se transformando nos últimos anos graças à sua própria capacidade de organização.

“Sua comunidade é muito bem estruturada, com associações de moradores e trabalhos de instituições nascidas lá ou que vieram de fora. Paraisópolis é hoje um bairro. Precisamos romper com essa visão preconceituosa e segregadora com relação às favelas”, diz o urbanista.

‘Amo esse lugar’

Hoje, Paraisópolis ainda é alvo de dezenas de processos judiciais, entre ações de reintegração de posse e usucapião.

Mas já possui uma parte significativa regularizada, como as áreas em que foram construídos um banco, uma loja de uma das maiores empresas brasileiras de varejo e até mesmo moradores que compraram seus terrenos diretamente com o proprietário.

Gilberto, filho de Louro, reconhece que a região se tornou mais insegura ao longo das décadas.

“Mas o poder público precisa trabalhar na prevenção, com ações de inteligência, não da forma como fizeram no Baile da 17. Não se trata ninguém daquele jeito”, afirma ele.

“Baile é que nem feira: todo mundo ama, mas ninguém quer na porta da sua casa todo dia. O ideal seria ter um horário e espaço adequado para não atrapalhar o trabalhador, mas é preciso solucionar o problema sem banalizá-lo como algo que só atrapalha”, disse.

Ele disse que, quando compara com o passado, Paraisópolis melhorou muito e está “uma maravilha, excelente”. Mas deixa a desejar “quando você olha para as outras regiões” da cidade.

“Nossa maior dificuldade talvez seja na área de saúde. Já lutamos muito, mas não temos um hospital. Entra e sai governo e ficamos só na promessa”, afirmou

Ao ser questionado sobre o futuro do bairro, ele diz emocionado que é ali o local em que mais se sente bem.

“Estou aqui porque amo esse lugar. Vejo a dificuldade das pessoas, mas para mim é o melhor lugar do mundo. Eu me sinto mais seguro aqui dentro do que no Morumbi. Eu estou ensinando meus filhos, nossa quarta geração aqui, a ter respeito e a valorizar essa comunidade. E eles vão passar isso para os filhos deles também.”

BBC BRASIL