“Pensam que somos serviçais”, diz desembargadora negra

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Foto: ANDRÉ BORGES/ESP. METRÓPOLES

Após 59 anos de história, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem a primeira mulher negra a vestir a toga de desembargadora. Nascida em Arraias (TO), cidade do interior, de família humilde, formada pela rede pública de ensino municipal, filha de pai professor e mãe dona de casa, Maria Ivatônia Barbosa dos Santos passou a compor o Pleno da Corte e atuará nas decisões de segunda instância.

Mas a vida dedicada aos estudos e à carreira de servidora do Estado não fizeram a magistrada e ex-delegada da Polícia Civil de Goiás evitar situações enfrentadas por boa parte da população do país: o racismo e o preconceito social.

“O racismo, que nós teimamos em não entender e não aceitar, é disfarçado. Sempre pensam que nós, negras, somos empregadas. No caso dos homens, pensam que são motoristas ou seguranças”, afirmou ao Metrópoles.

Na noite de quinta-feira (12/12/2019), Maria Ivatônia foi promovida do cargo de juíza de direito substituta de 2º grau ao de desembargadora, em cerimônia conduzida pelo presidente do TJDFT, Romão Cícero de Oliveira.

Reconhecida pelo trabalho, pela formação, competência e seriedade dentro da Corte, a magistrada relatou que até hoje passa por momentos de discriminação, e que negar a existência do racismo é o mesmo que reforçá-lo.

Quando morava no interior do Tocantins, ainda pequena e na família com sete irmãos, Maria Ivatônia não sabia o que era preconceito. As primeiras situações de discriminação ocorreram quando se mudou para Goiânia, onde cursou o ensino superior. “Na cidade grande você percebe [o racismo]”, disse.

Confira a entrevista:

Como foi a trajetória até o cargo de desembargadora?

Tive uma infância simples. Estudei na escola municipal, pública. Depois, no único colégio de ensino médio que havia na cidade, das Irmãs Dominicanas. Mais tarde nos mudamos para Goiânia, onde cursei faculdade. A infância simples me preparou para a vida com muita propriedade.

No início, na minha cidade pequena, não percebia muito a discriminação, porque todo mundo é muito próximo, todo mundo é parente. O racismo que nós teimamos em não entender e não aceitar, é disfarçado. Quando se vai para a cidade grande, você percebe. Sempre pensam que nós, negras, somos empregadas. No caso dos homens, pensam que são motoristas ou seguranças. Temos que fazer valer o nosso espaço.

A senhora é a primeira desembargadora negra do TJDFT. Como vê este momento?

É uma alegria grande ser promovida a desembargadora, tomar posse e poder dedicar isso a todas as meninas e meninos, negros e negras deste Brasil continental, que tem 56% de população negra e tão pouca gente em lugares de projeção. Esse é o recado que queria dar: dizer que nós podemos e devemos ocupar nosso espaço.

Como será a atuação no cargo de desembargadora?

Pretendo continuar a atuar como sempre: com a Justiça da forma que tem de ser feita. O princípio da igualdade é tratar igualmente os iguais e desigualmente os diferentes na medida de suas igualdades e desigualdades. Me perguntam sempre: “A senhora é contra o merecimento?”. Eu respondo: “Não”. Mas merecimento pressupõe, necessariamente, que nós estejamos em absoluta igualdade de condições. Não podemos simplesmente pegar duas pessoas que estão desiguais e compará-las, igualá-las. A Justiça precisa fazer essa diferenciação.

A senhora já sofreu algum tipo de preconceito?

Não neste tribunal. O TJDFT não tem essa visão preconceituosa. O preconceito velado está na sociedade. Vou dar um exemplo: em um restaurante no Rio de Janeiro, num hotel cinco estrelas, cheguei e desci do táxi logo após meu amigo loiro descer. O segurança abriu a porta para ele e disse: “Pois não, doutor?”. Eu cheguei em seguida, o mesmo segurança se postou na minha frente e disse: “A senhora deseja o quê?”. Respondi: “Que você me conduza até a piscina do hotel ou até o gerente, que irei reclamar de você”.

“São situações que a gente convive. Quando estou com menos paciência, chego falando outra língua e pensam que sou uma estrangeira rica. Não se trata de desabafo furioso, é só uma constatação. Temos que entender que o fato de negar o racismo não significa que ele não exista. Parece que é o contrário, faz com que ele cresça.”

Maria Ivatônia se graduou em direito pela Universidade Católica de Goiás (UCG) e não parou mais de estudar. A magistrada tem pós-graduação em direito constitucional eleitoral pela Universidade de Brasília (UnB); em direito penal e direito administrativo pela Universidade Católica de Brasília; e em direito penal, direito processual penal e direito constitucional pela UCG.

Ocupou o cargo de delegada da Polícia Civil de Goiás e coordenou a Central de Guarda de Objetos de Crime (Cegoc), tendo sido condecorada com a Medalha do Mérito Policial Civil Juscelino Kubitschek de Oliveira pelos relevantes serviços prestados à frente da Cegoc; entre outras atividades.

Ela ingressou na magistratura do Distrito Federal em 7 de maio de 1993, como juíza de direito substituta. Em fevereiro de 1996, foi promovida a juíza de direito e, em abril de 2014, tomou posse no cargo de juíza de direito substituta de 2º grau, que exercia até a quinta-feira (12/12/2019).

A magistrada atuou na 2ª Vara de Entorpecentes e Contravenções Penais do DF. Foi titular da Auditoria Militar e da 2ª Vara Criminal de Taguatinga, além de diretora do Fórum de Taguatinga e do Fórum Desembargador José Júlio Leal Fagundes.

No Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF), a magistrada ocupou os cargos de desembargadora eleitoral titular e substituta, bem como o de ouvidora, e foi condecorada com a medalha do Mérito Eleitoral do DF na classe jurista. Além disso, foi coordenadora da Revista da Escola da Magistratura do Distrito Federal.

Metrópoles