Repúdio a fundo eleitoral uniu esquerda e direita
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Por motivos diferentes, a proposta irritou grupos de esquerda e de direita — desde movimentos sociais tradicionais até grupos que foram às ruas pedir o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2015 e 2016.
Para os movimentos de direita, partidos políticos não deveriam ser beneficiados com dinheiro público de forma nenhuma — cada sigla iria à luta atrás de recursos para financiar suas campanhas. Já os movimentos de esquerda defendem a existência do financiamento público, desde que em valores mais modestos e com critérios mais igualitários de distribuição do dinheiro.
O aumento do fundo para R$ 3,8 bilhões foi aprovado na última quarta-feira (04), na Comissão Mista de Orçamento (CMO), em um relatório preliminar ao Orçamento de 2020.
O acréscimo foi fruto de um acordo que envolveu os líderes de todos os principais partidos representados no Congresso — um ofício pedindo o aumento foi assinado por representantes de PT, PSL, PSDB, DEM, PDT e PSB, além de PP, MDB, PTB, PL, PSD, Solidariedade e Republicanos. Juntos, esses partidos somam 430 dos 513 deputados, e 62 dos 81 senadores.
Apenas algumas legendas de menor expressão no Congresso, como PSOL, Novo, Cidadania (antigo PPS) e Podemos (antigo PTN) foram contrários ao aumento.
Ao falar sobre o tema, políticos de quase todos os partidos argumentam que as eleições municipais (as próximas no calendário eleitoral) são as maiores do país — pois trata-se de uma disputa ocorrendo em cada um dos 5.570 municípios brasileiros. Cada uma dessas localidades precisa eleger um prefeito, um vice e uma câmara de vereadores, e os candidatos precisam de recursos para a campanha.
Mas segundo o cientista político Bruno Carazza, este é um argumento falso: em 2016, as eleições municipais não contaram nem com doações de empresas (proibidas em 2015 pelo Supremo Tribunal Federal) e nem com o Fundo Eleitoral. Este foi criado pelo Congresso em 2017, e usado pela primeira vez em 2018.
As eleições de 2016 transcorreram normalmente, diz Carazza, que é autor de um livro sobre o financiamento da política no Brasil.
“De fato, são 5 mil eleições distintas. Mas são realizadas em territórios que costumam ser pequenos, os municípios. Os gastos acabam sendo menores, pois o contato corpo a corpo do candidato com os eleitores é bem mais fácil. É uma eleição com um custo unitário de campanha muito menor que uma campanha nacional, ou disputada num Estado inteiro”, diz ele à BBC News Brasil.
Para Carazza, a tentativa de inflar o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (o nome formal do Fundo Eleitoral) é uma reação da classe política para tentar preservar seu poder — as eleições passadas foram marcadas por pressões que resultaram na maior renovação da Câmara em 20 anos (desde 1998).
“É uma pressão que veio de vários lados. Desde candidatos milionários que bancam as próprias campanhas, como João Doria (PSDB-SP), até a entrada em peso de evangélicos na política, e a onda em torno de Jair Bolsonaro”, diz ele.
No Congresso, a avaliação é de que o governo de Jair Bolsonaro (PSL) conseguiu jogar a população contra a proposta, e há conversas em curso entre os parlamentares para reduzir o valor do fundo para R$ 2,5 bilhões — este era o valor original do fundo, no texto apresentado pelo governo. Na semana passada, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, chegou a dizer que foi “surpreendido” com a retirada de cerca de R$ 500 bilhões do orçamento de sua pasta para 2020, que teriam sido alocados para o Fundo Eleitoral.
O relator do texto, deputado Domingos Neto (PSD-CE), disse à BBC News Brasil que a fala do ministro é incorreta. O dinheiro para o Fundo veio de receitas que não foram corretamente estimadas pelo governo, afirma ele. E ministérios como o da Saúde terão aumento de recursos em 2020, não redução, segundo Domingos Neto.
De qualquer forma, o valor final do Fundo deve ser definido na semana que vem, quando os deputados e senadores se reunirão para votar o Orçamento da União de 2020.
Ao longo desta semana, o Palácio do Planalto também sinalizou que Jair Bolsonaro poderia vetar um Fundo Eleitoral maior que R$ 2,5 bilhões — deputados e senadores poderiam depois derrubar o veto presidencial, mas isto os obrigaria a tocar no assunto mais uma vez, aumentando o custo político da operação.
Em movimentos de direita, prevalece a opinião de que o Fundo Eleitoral sequer deveria existir — e que os partidos políticos deveriam ser financiados pela sociedade de forma direta (com doações).
“O que nós temos é uma elite política carcomida, que perdeu poder (em 2018) e que agora está dobrando a aposta numa estratégia que deu errado. Achando que vai conseguir frear uma troca geracional e de práticas políticas com mais fundão, mais marqueteiros”, diz Renan Santos, coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL).
“No fundo, são como os luditas (movimento de trabalhadores ingleses do século 19), que quebraram as máquinas achando que iam conseguir parar a revolução industrial”, disse ele à BBC News Brasil.
Renan critica ainda os gastos provocados por um aumento desta ordem — que ultrapassariam a dezena de bilhões de reais na próxima década.
“Em 2016 e em 2018 nós conseguimos provar com algumas campanhas, inclusive a minha, que os candidatos que realmente têm impacto e conseguem mobilizar as pessoas não precisam de tanto dinheiro. O Fundo só é importante para quem está distante da realidade dos seus representados e precisa gastar somas enormes com propaganda”, diz outro líder do MBL, o vereador paulistano Fernando Holliday (DEM).
Rogério Chequer, ex-coordenador do movimento Vem Pra Rua, diz que mesmo o valor “menor” de R$ 2,5 bilhões ainda é “escandaloso” e desnecessário — e que os partidos deveriam financiar a si próprios.
Ao longo do dia, o Vem Pra Rua seguiu publicando postagens em suas redes sociais contra o Fundo Eleitoral.
“Os partidos deveriam atender aos seus militantes, aos seus eleitores, e conseguir doações de forma voluntária. Talvez sem doação de empresas, mas esse não é o ponto mais importante”, diz Chequer.
“O importante é o partido ganhar conforme o trabalho que ele ofereça. Hoje, continuam sendo custeados pela população independente de qualquer coisa”, diz ele à BBC News Brasil.
Para alguns movimentos de esquerda, o Fundo deve continuar existindo — mas bem menor do que é hoje; e principalmente com outras regras de distribuição.
Hoje, os recursos públicos distribuídos para os partidos são divididos de acordo com a votação da sigla para a Câmara dos Deputados em eleições anteriores — assim, os partidos maiores ficam com a maior parte dos recursos. No caso do Fundo Eleitoral, apenas 2% são divididos de forma igualitária entre todos os partidos. No Fundo Partidário, 5% são distribuídos desta forma.
No começo desta semana, a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, um fórum que reúne vários grupos, aprovou uma nota segundo a qual o aumento do Fundo Eleitoral “aprofundará a injustiça social” no Brasil.
O aumento de R$ 1,8 bilhão em relação ao texto anterior “penalizará verbas que financiariam emendas parlamentares para setores como saúde e educação”, segundo a nota da Plataforma.
“É necessário que também as campanhas se adequem ao contexto de restrições orçamentárias, sob pena de agravamento das injustiças sociais que historicamente marcam nosso país. O sistema político, eleitoral e partidário deve buscar campanhas mais baratas, eficientes e propositivas”, diz um trecho.
José Antonio Moroni é dirigente do Inesc, uma ONG que trabalha temas de direitos humanos, Orçamento e democracia. Ele ressalta que há diferenças importantes nos motivos que fazem esquerda e direita serem contra o aumento no Fundo Eleitoral.
“A nossa argumentação contra o valor do fundo é diferente da deles (direita). Eles são contra o fundo em si, independente do valor. Usam o valor alto, de R$ 3,8 bilhões, para desmoralizar o financiamento público como um todo, pois defendem o financiamento privado, por empresas”, diz ele.
“Na verdade, é uma linha não só contra o financiamento público, mas contra a política. É uma defesa da antipolítica”, diz Moroni.
O Fundo Eleitoral (Fundo Especial para o Financiamento de Campanhas, ou FEFC) foi criado pelo Congresso em 2017, durante a “minirreforma eleitoral” daquele ano. Trata-se de uma resposta à uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que em 2015 decidiu que as doações de empresas para as campanhas eleitorais contrariavam a Constituição de 1988.
Trata-se de uma verba que só existe em anos eleitorais — nas eleições de 2018, distribuiu R$ 1,7 bilhão (R$ 1.716.209.431,00) para 34 das 36 legendas registradas no Brasil — o Novo não aceitou os recursos, e a Unidade Popular (UP) não existia ainda.
A divisão do dinheiro entre os partidos segue uma regra relativamente complexa. Apenas 2% é distribuído entre todos, de forma igualitária; 15% é distribuído conforme o número de senadores de cada partido; 35% é dividido conforme a votação para a Câmara na eleição anterior; e 48% de acordo com o número de deputados de cada partido.
Em 2018, estas regras beneficiaram o MDB, que recebeu a maior fatia do FEFC: R$ 230 milhões. O PT veio em seguida, com R$ 212 milhões; e o PSDB ficou em terceiro, com R$ 185,8 milhões.