A incompetência de Weintraub e seus frutos

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Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

A incompetência é suprapartidária. É o próprio Enem que ensina. Lembremos da prova vazada no governo Lula, em 2009. Mas o Enem também ensina que o sucesso de um exame – com tamanho grau de complexidade logística – depende de estabilidade, da repetição de procedimentos que firmam padrões e minimizam riscos; condição fundamental para se chegar à excelência, aquele lugar em que jovens brasileiros se sentem à vontade, seguros, para testar seus conhecimentos.

Nos últimos anos, o Exame Nacional do Ensino Médio – com problemas, mas nada de natureza estrutural – avançou para se acercar da categoria de programa de Estado; aquela que paira acima dos desejos e vícios do governo de turno. Mas então veio a eleição de Jair Bolsonaro – e, sem tardar, logo viria Abraham Weintraub, cujo conjunto da obra já o lista entre os piores ministros da história.

Ao cair do inepto Vélez Rodríguez, alertei para que não se comemorasse antes de conhecido o sucessor; porque coisa alguma é tão ruim que não possa piorar. Meu alarme de prudência estava certo. Saímos do roda-presa Vélez para o língua-solta, ademais dançarino, Weintraub – o pateta no parquinho ideológico da guerra cultural.

Devo dizer que, como o valor da impessoalidade na administração pública foi subvertido de todo pela linguagem populista do bolsonarismo, novos parâmetros se impuseram; de modo que, já que incontornável, a figura do canastrão teve de ser admitida. Com uma só exigência: se o sujeito, ministro de Estado, quiser lacrar, mitar, que ao menos seja competente. Eu até flexibilizava o requisito: que ao menos fosse esperto. Ou seja: se o elemento, ministro da Educação, quisesse passar o dia provocando inimigos imaginários e lutando contra o marxismo cultural com barras de chocolate, que ao menos se cercasse de especialistas no assunto da pasta. Weintraub – sendo Weintraub – não o fez.

Ou seja: Weintraub – sendo Weintraub – não fez o mínimo para que Weintraub pudesse existir (enganar) como ministro. Não entendeu, por falta de recursos, que, para se dançar na chuva, é preciso ter um chão em que não escorregar. Aí está. Aí está o Enem. Ele escorrega; mas o tombo é de milhares de jovens.

Vejamos o caso do INEP, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira, e consideremos o fato de que está – em pouco mais de um ano – sob o quarto comando desde que o governo Bolsonaro começou. É sinal que berra. Houve Maria Inês Fini, oriunda do governo Temer e logo demitida por Vélez. Fini, pedagoga, doutora em Educação, estava no cargo, presidindo o INEP, desde 2016 – sendo uma das formuladoras, criadoras mesmo, do próprio ENEM. Uma especialista. A última. Depois, atenção, viriam: Marcos Vinicius Rodrigues, indicado por Vélez, engenheiro; Elmer Vicenzi, nomeado por Weintraub, delegado da Polícia Federal; e Alexandre Lopes, atualmente no cargo, servidor público de carreira como analista de comércio exterior.

Currículo não é tudo. Não formo entre os que defendem a reserva de mercado. Um bom administrador não raro resolve problemas de gestão, sobretudo se trabalhando com técnicos da área. Mas o desprezo pela figura do educador é constatação imediata à mais mínima análise da história do MEC bolsonarista. Esse desprezo, que derivou de alguma soberba, mas principalmente de descaso com as necessidades concretas de uma quitanda com dia marcado para entregar as laranjas, sempre cobra preço.

Entre março e maio, quando se acelerou a troca de cargos de direção no ministério, notadamente no INEP, que organiza o Enem, já restava evidente – assustadoramente claro – que o exame correria riscos. Em decorrência de técnicos que eram ceifados ou que pediam demissão, o Enem ficou – objetivamente – um longo período sem um responsável por sua operação dentro do INEP. Foi avisado. Não tinha como dar certo.

E ainda houve o problema – gravíssimo – com a gráfica. A falência da Donalley, que imprimia as provas havia dez anos, pegou de surpresa um ministério sem capacidade executiva para encontrar soluções. O trabalho de uma gráfica, numa empreitada de caráter continental como o Enem, extrapola em muito a simples impressão do teste para se definir como um complexo de segurança e logística.

Como todo o irresponsável fanfarrão, Weintraub nunca esteve – nem sequer minimamente – preocupado com a delicadíssima questão; isso sendo verificável na inexistência de manifestações suas a respeito. Weintraub: um incompetente que delegou a incompetentes. O sujeito estava em outra, interessado em fantasiar a existência de universidades dedicadas ao comércio e ao consumo de drogas. Como tampouco preocupado está com o futuro do Fundeb – outra bomba a logo estourar.

Sem nova licitação, mas dentro da lei, tomou-se o rumo mais fácil, para muitos o caminho preguiçoso, com a escolha da gráfica terceira colocada no último certame, a Valid – que nunca lidara com exames. O tempo era mesmo curto, e a chance de lambança era grande. Poucas vezes se terá reunido um tal grupo de pessoas que, com tremenda missão a cumprir, tão pouco sabia sobre como cumpri-la.

Não deu outra, conforme explica – recorrendo ao belo eufemismo “inconsistência” – o próprio presidente do INEP: “A gráfica imprimiu a prova e um cartão resposta. Tem um código de barras do aluno. Uma outra máquina pega essa prova e faz a associação com o gabarito e grampeia. Neste momento, temos o código de barras da prova e o código de barras do cartão resposta. Há um casamento: a associação entre a prova e o participante. Neste processamento da gráfica foi onde ocorreram estas inconsistências”.

Registre-se, a propósito, que o Tribunal de Contas da União – segundo noticiado pelo Estadão – recebera denúncias de um esquema no INEP para favorecer a Donalley, gráfica cuja falência teria feito a suposta falcatrua migrar para a Valid; sendo fato, curioso fato, que diretores da falecida migraram para a herdeira do contrato.

O restante do desfile de incompetência e irresponsabilidade é o que temos hoje – e que se pode resumir em dois itens: a suspensão, pela Justiça, da divulgação dos resultados do Sisu, e a consequente suspensão, pelo MEC, das inscrições no Prouni. Efeito cascata; que, tudo indica, está longe de cessar. E que independente da eventual derrubada da liminar – o que, cedo ou tarde, ocorrerá.

Ou não se deve esperar, uma vez derrubada a suspensão, uma chuva de ações por meio do Ministério Público Federal em cada estado da Federação? A título de medição de volume, apenas o site do MEC recebeu mais de 170 mil reclamações de estudantes.

A decisão da presidente do TRF-3, Therezinha Cazerta, sustentando o entendimento da Justiça Federal de São Paulo, a que suspendeu a publicidade dos resultados, age – explicitamente – para “proteger o direito individual dos candidatos do Enem a obterem, da administração pública, um posicionamento seguro e transparente a respeito da prova que fizeram”.

O texto da desembargadora toca no ponto – no nervo: o grave erro do MEC e a forma como o ministério conduz o enfrentamento do problema resultam num ambiente de desconfiança que pode levar ao colapso do exame.

À magistrada não terá passado impune o cinismo – a desfaçatez – da AGU, segundo a qual a decisão da Justiça de São Paulo representaria “prejuízo a todos os estudantes que obtiveram nota necessária e que não poderão ingressar desde logo e mais brevemente em instituição pública de ensino superior”.

A isto, Cazerta respondeu diretamente: “Dar prosseguimento ao cronograma, nessa direção, sem enfrentar adequadamente as consequências de algo ocasionado pela própria União Federal é que é um risco à política educacional do país, e não o contrário, porque implica, como fica claro do que consta nestes autos, validar os resultados de um exame, utilizando-o para definir o futuro das pessoas e balizar políticas públicas, sem que houvesse um grau mínimo de transparência a respeito dos pedidos apresentados pelos candidatos e uma reavaliação do impacto que o equívoco teve para os demais candidatos.”

E mais: “Os efeitos decorrentes da decisão do juízo de primeiro grau – a exigência de que o Estado forneça uma resposta transparente e adequada, mesmo que ausente mudança de nota, àqueles que o solicitaram – não são inócuos, mas, pelo contrário, traduzem-se na proteção aos direitos dos concorrentes ao exame de terem os esforços que despenderam na realização da prova respeitados pelo ente público”.

É onde estamos: ao governo federal – que recorre ao STJ – ora cabendo comprovar que o erro na correção das provas do Enem de 2019 foi totalmente solucionado. Esse imbróglio judicial vai longe; e logo baterá às portas do Supremo.

Diz a desembargadora: “Assim, mais do que apenas corrigir as provas em que havia o erro gráfico – primeiro aspecto do problema – seria necessário colher uma nova amostra – fazendo-o de um universo em que todas as provas estivessem corretamente corrigidas –, calibrando os itens do exame novamente e produzindo, por consequência, uma nova correção de todas as provas, em que aplicados esses novos parâmetros.”

O presidente Jair Bolsonaro não precisa ter compromisso com a educação brasileira, não precisa estar preocupado com o futuro dos jovens do Brasil, para compreender, egoisticamente, que não haverá ração jogada ao gado – no mundo da guerra contra os comunistas onipresentes – que compense os problemas, reais, palpáveis, que um incompetente absoluto como Weintraub causa a seu governo.

Se preferir, porém, emburrar o custo da delegação com a barriga e insistir em camuflar a espetacular exibição de incapacidade de seu ministro com teorias da conspiração, como a que especula sobre sabotagem no Enem, que se lembre: não existe sabotador mais eficiente que um colaborador cuja incompetência é recompensada.

 O Globo