Abordagem da PM precede o sumiço ou a morte, diz ativista

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Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

“A abordagem é uma violência”. Dessa forma Rosa Anacleto, administradora de 63 anos e integrante da Unegro (União de Negros pela Igualdade) define, sem titubear, o que para ela significa uma abordagem policial. Rosa entende que é nos enquadros que se começa o genocídio da população negra, passando por uma série de abusos até uma possível execução.

“Discutir abordagem e todos os seus aspectos é importante, tanto quanto falar de movimento social, quanto quando você vê um menino ser constrangido por um policial e depois o corpo ser levado para um canto”, explica a presidenta da entidade, fundada em 1988 em Salvador, com atuação em 24 estados e no Distrito Federal, e da qual ela está há 27 anos.

Rosa estava em um grupo de 25 pessoas que se reuniu na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) na noite desta segunda-feira (27/1) para debater como o racismo estrutural opera nas abordagens policiais. O objetivo a partir desse encontro é que os movimentos sociais presentes produzam um documento a ser enviado para as autoridades para cobrar mudanças.

Uma reportagem publicada pela Ponte em junho do ano passado, trazia um estudo sobre o uso de fundada suspeita para justificar uma abordagem. Na maior parte dos casos, o chamado “local conhecido” é o suficiente para uma pessoa ser abordada.

“Ou você cuida da abordagem ou você sempre terá essa questão de ver depois, no final, o genocídio”, diz Rosa.

Ponte – Qual a importância de se discutir abordagens feitas pela Polícia Militar do ponto de vista racial?

Rosa Anacleto – Impacta desde o momento que você sai à rua. Quando se sai, você já é discriminado pela cor de pele. O jovem negro sofre muito com isso porque a primeira coisa que é colocada para ele, a primeira pergunta que um policial faz, não é nem sobre o documento, é se tem passagem pela polícia. Eu acho que estamos vivendo essa situação em que o jovem negro é o tempo todo tido primeiro como um bandido e não tem oportunidade de se defender porque a truculência desses policiais é uma coisa que foge do que é racional. É um ódio que se tem dessa população jovem negra que a gente, se não tiver formas de coibir essa abordagem, vemos ver ela se transformar em um assassinato que nós classificamos como genocídio.

Ponte – E isso ocorre mesmo com os policiais negros em ação. Por quê?

Rosa Anacleto – Sim, com certeza. A corporação foi trabalhada por todos, independente da pele e de quem está vestindo a farda, a ter o negro como suspeito, como bandido, como o traficante. Se não é traficante, é usuário e, como usuário, tem que pagar por isso também. É porque a formação dos policiais é essa.

Ponte – Como discutir sobre abordagens violentas e abusivas em meio a governos como os de João Doria (PSDB), em São Paulo, e Jair Bolsonaro (sem partido), no Brasil, que têm em sua base de atuação o apoio a uma polícia que atira para matar, como já dito por ambos?

Rosa Anacleto – A mídia tem um papel importante nisso tudo, mas não é a mídia que conhecemos, a tradicional, é a mídia alternativa, cada veículo de comunicação alternativo que puder falar sobre a questão das abordagens, da questão do genocídio e como a vida negra importa. Isso nos ajuda a ter um diálogo com a sociedade, que é quem legitima e quem vê no policial que mata um menino negro e jovem, bandido ou não. Sempre digo que não existe pena de morte no nosso país. Se não existe, se existe alguém ou um menino que está cometendo algum crime, ele tem que ser levado e cumprir a sua pena e não ser executado, assassinado.

Ponte – Por que as abordagens são usadas como forma de intimidação?

Rosa Anacleto – É muito simples: você, quando coloca medo nas pessoas, você faz com que elas não reajam quando se comete uma atrocidade. Eu sofri uma abordagem junto com meu filho quando ele tinha 24 anos. O policial me intimidou tanto que eu, uma pessoa que discute isso há tantos anos, fiquei gaguejando, frágil. Faz sete anos. E isso só piorou [de lá para cá]. Eu sei disso. Eles intimidam de uma tal forma que é para você não ter condições de reagir. Eu senti isso.

Ponte – Recentemente, policiais homens abordaram de forma violenta mulheres que estavam em manifestações, inclusive com agressão. Como é a questão do gênero quando falamos de abordagens?

Rosa Anacleto – Eles estão chegando a esse excesso porque eles têm alguém no governo, tanto na presidência quanto no estado, que legitima essas ações. Não importa mais se é uma mulher, se é um homem, se é um menino… Desde que se manifeste contrário àquilo que eles querem, eles vão tratar dessa forma.

Ponte – Se pudesse definir em uma frase o que é uma abordagem policial, qual seria?
Rosa Anacleto – Abordagem é uma violência.

Ponte – Em sua atuação desde o final da década de 1980, vê diferença na perseguição justificada pelo racismo, tanto na polícia quanto no país como um todo?

Rosa Anacleto – Há diferença. Antes era muito camuflado e hoje está explícito. Então, até por conseguir explicitar e derrubar o mito da democracia racial, hoje você tem legislação que te protege. Agora, fazer valer é que é o nosso grande desafio.

Ponte – Tivemos recentemente dois casos de jovens que desapareceram: o Cadu, 20 anos, em Jundiaí, e também o caso do Lucas, em Santo André, após abordagens policiais, segundo versão de testemunhas. O quanto os desaparecimento forçados, consequentes de abordagens, precisam ser debatidos?

Rosa Anacleto – É importante porque, veja só: é a partir da abordagem que você some com um garoto, é a partir dela que você assassina esse garoto. Discutir a abordagem e todos os seus aspectos é importante, tanto quanto se falar de movimento social, que sofre a violência por estar se manifestando em um país democrático, isso é natural e tem que ser assim, quando você vê um menino ser constrangido por um policial e depois o corpo ser levado para um canto. Enfim, tudo começa na abordagem. Ou você cuida da abordagem ou você sempre terá essa questão de ver depois, no final, o genocídio.

Ponte