Alvim e a ópera Lonhengrin: entenda a polêmica

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Foto: Enrico Nawrath/Festspiele Bayreuth/AFP

Richard Wagner (1813-1883) é um nome onipresente todas as vezes em que a humanidade debate se é possível apreciar a obra artística sublime de um homem repugnante. Compositor de óperas do século XIX, o alemão de Leipzig merece sua má reputação, mas nem por isso o mundo da ópera conseguiu se desviar da inestimável qualidade de obras como “Lohengrin”, cujo prelúdio foi usado como trilha para o bizarro anúncio do agora ex-secretário de Cultura, Roberto Alvim. No entanto, não se pode considerar que “Lohengrin”, que estreou em Weimar em 1850, é uma espécie de “Mein Kampf” musical.

A ópera se passa na Idade Média, no ducado de Brabante (hoje Bélgica), que enfrenta invasores. Lohengrin é um cavaleiro templário, filho de Percival/Parsifal, defensor do Santo Graal. Ele chega em cena incógnito num barco puxado por um cisne para ser o defensor de Brabante (e noivo da mocinha local) e sai da mesma forma, quando exigem que ele revele sua identidade.

Aliás, se você já ouviu a Marcha Nupcial de Wagner (“Lá vem a noiva, toda de branco”), saiba que sua melodia está lá, no Ato III. “Lohengrin” é o papel de tenor mais acessível de Wagner, que não exige a resistência vocal demandada por obras como “A Valquíria” e “Tristão e Isolda”. Passaram por ali nomes como Plácido Domingo, Klaus-Florian Vogt, Francisco Araiza e Jonas Kaufmann, para citar os astros mais recentes.

Não se trata, porém, da obra mais nacionalista de Wagner. O compositor gostava de rótulos como “música do futuro” e da “verdadeira arte germânica”, mas no fundo queria apenas garantir para si um território em que fosse profeta. Foi revolucionário quando lhe interessava e se associou ao Rei Ludwig II da Baviera quando lhe foi oferecido um teatro sob medida em Bayreuth. “Os Mestres-Cantores de Nuremberg” é a partitura em que esses temas são mais caros, uma comédia sobre um torneio de cantores-compositores, em que tradição e inovação dialogam, para o triunfo de…. Wagner.

“Lohengrin” é uma ópera romântica, em que o passado histórico e o amor impossível, temas caros ao maestro, conduzem o enredo. O prelúdio, que a orquestra executa antes do início do drama, é uma página etérea, belíssima no uso das cordas na região mais aguda, criando uma atmosfera de sonho que será rompida, apenas, pelo heroísmo templário anunciado pelas trompas e trompetes.

A verdade é que, para os fins semióticos que a peça de propaganda da secretaria pretendia, qualquer obra de Wagner poderia ser escolhida. Mesmo morto seis anos antes do nascimento de Adolf Hitler, Wagner sempre será, na música, o compositor mais próximo ao líder nazista, que se confessava fã de sua estética e usava sua música nos grandes momentos públicos de celebração nacional. Montagens de “Rienzi, o último tribuno” e “Lohengrin” fizeram o Führer escrever sobre sua devoção por Wagner em momentos decisivos.

E não ajuda a defesa do compositor o fato de ter escrito o odioso panfleto “O judaísmo na música”, em que se aproveitava do antissemitismo (que sempre foi um problema alemão, do qual nem Martinho Lutero escapa) para atacar o compositor judeu Giacomo Meyerbeer, então altamente bem-sucedido na Ópera de Paris – outro exemplo de que Wagner não tinha qualquer escrúpulo diante de uma oportunidade de se promover. Um exemplar do panfleto pode ser visto no Yad Vashem, o museu do Holocausto de Jerusalém. Não é por acaso que a direção do Festival de Ópera de Israel evita, sem qualquer laivo de dúvida, programar títulos de Wagner em suas temporadas. É uma questão de estado.

Por outro lado, a obra de Wagner foi absolvida e reinterpretada em diversas oportunidades nos teatros em que ópera é levada a sério – é mais fácil haver polêmica sobre “Turandot”, de Puccini, ou “Porgy and Bess”, de Gershwin, essas sim obras em que a representação de chineses e negros levanta reais questões sobre o que é legítimo e o que é ofensivo.

Já sobre “Lohengrin”, não há qualquer polêmica em torno da obra, largamente aceita como uma das principais óperas do período romântico alemão, com excelentes gravações e produções tanto na Europa quanto fora dela. Em 2015, foi encenada no Municipal de São Paulo, e o Rio quase teve uma montagem recente de “Lohengrin” em 2017: vinda da Argentina, a produção foi cancelada quando João Guilherme Ripper foi exonerado do cargo de presidente da Fundação Teatro Municipal.

O Globo