Assassinato de Soleimani pode forçar saída dos EUA do Iraque

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Foto: ATTA KENARE/AFP

O assassinato de Qassem Soleimani, o mais famoso general iraniano, em um ataque aéreo dos Estados Unidos ao deixar o aeroporto de Bagdá, garante uma escalada nas hostilidades entre os EUA e o Irã. A consequência mais séria e provável é que a liderança iraniana use os assassinatos para pressionar o governo a expulsar as forças americanas do Iraque.

O governo iraniano não será o único a tentar uma retaliação. Entre os que morreram no carro em que viajava o general Qassem Soleimani estava Abu Mahdi al-Muhandis, chefe do grupo paramilitar pró-iraniano Kataib Hezbollah, cujos militantes poderiam muito bem retomar seu ataque à Embaixada dos EUA na Zona Verde em Bagdá, onde realizaram uma incursão limitada no início desta semana.

Crucialmente, as forças de segurança iraquianas ficaram de lado, sublinhando a vulnerabilidade da embaixada e de todas as bases dos EUA no Iraque, onde ainda estão 5 mil soldados americanos.

A reação iraniana mais provável será intensificar seus esforços para acabar com a presença militar dos EUA no Iraque, agindo através do governo iraquiano e das forças paramilitares pró-iranianas. A liderança iraquiana, que normalmente se equilibra entre Washington e Teerã, já estava com raiva depois que os EUA atacaram unilateralmente as bases do Kataib Hezbollah no último domingo, matando 25 de seus combatentes.

As forças dos EUA supostamente estão no Iraque com o único objetivo de combater o Estado Islâmico, em colaboração com as Forças Armadas iraquianas. Usar essa presença militar para matar opositores dos americanos é claramente uma violação grave da soberania iraquiana.

Os ataques aéreos dos EUA no domingo não foram apenas condenados pelos líderes políticos iraquianos, mas pelo grande aiatolá Ali al-Sistani, o líder espiritual dos influentes xiitas no país. Ele também condenou o assassinato de Soleimani.

Os assassinatos na área de carga do aeroporto de Bagdá representam um ataque muito maior à soberania iraquiana do que qualquer coisa que tenha acontecido anteriormente. Os iranianos podem achar que é do seu interesse de longo prazo deixar o governo e o Parlamento iraquianos empurrarem os EUA para fora do país, em vez de atacarem diretamente os próprios interesses dos EUA.

Ao mesmo tempo, os iranianos e o resto do mundo foram surpreendidos pelo que aconteceu. Trump havia respondido de forma cautelosa a sérias provocações iranianas, como o abate de um drone dos EUA sobre o Golfo Pérsico, em 20 de junho do ano passado, e o ataque com mísseis contra instalações de petróleo sauditas em Abqaiq e Khurais, em 14 de setembro, atribuídos ao Irã.

Não está claro por que Trump reagiu de maneira tão espetacular ao ataque do Kataib Hezbollah a uma base americana em Kirkuk, há uma semana, que matou um empreiteiro americano e vários iraquianos.

Os ataques aéreos em retaliação dos EUA, que mataram 25 membros do Kataib Hezbollah, já haviam sido criticados por serem excessivos e politicamente contraproducentes. Eles aconteceram no momento em que o Irã estava perdendo popularidade e influência no Iraque, porque apoiou — e provavelmente iniciou — as mortes a tiros de centenas de manifestantes que protestavam contra a corrupção do governo e a falta de emprego.

Graças a snipers paramilitares pró-iranianos que disparavam diretamente contra a multidão, os protestos se transformaram em uma demanda pela saída do governo iraquiano e os manifestantes culparam o Irã como principal orquestrador da repressão. O general Soleimani foi o homem que deu as ordens para a repressão a partir de 1º de outubro, possivelmente interpretando os protestos como uma conspiração dos EUA para derrubar o governo iraquiano com uma “revolução de veludo”, como no Egito, em 2011, e na Ucrânia, em 2014.

Se Soleimani pensava assim, certamente estava enganado. A brutalidade da repressão aumentou o movimento antigoverno — que chegou próximo a um levante em massa. Além disso, os manifestantes viam cada vez mais o Irã como a mão estrangeira por trás dos assassinatos de manifestantes. O Irã, até recentemente visto pelos xiitas iraquianos como seu grande aliado contra Saddam Hussein e o Estado Islâmico, tornou-se impopular e seus consulados nas cidades sagradas xiitas de Karbala e Najaf foram queimados por multidões furiosas.

Esses acontecimentos foram a ameaça mais grave à influência iraniana no Iraque desde a invasão americana e britânica de 2003. Surpreendentemente, Trump pode ter salvado sem querer um Irã em ruínas no Iraque, realizando o que será retratado como o martírio de Soleimani, al-Muhandis e outros membros menos conhecidos do Kataib Hezbollah.

O governo iraquiano agora terá que se apresentar como um defensor da independência nacional do Iraque sob o regime xiita contra as ações dos EUA. Ele poderá acusar os manifestantes de serem aliados secretos dos EUA e alegar que a comunidade xiita em geral está ameaçada.

Uma das razões pelas quais os protestos de rua ganharam força nos últimos três anos é que a derrota de EI retirou o que as massas xiitas consideravam uma ameaça existencial. Isso permitiu que eles se concentrassem em sua própria liderança cleptocrática. Ao ameaçar a predominância xiita no Iraque, tratando-o como se fosse um país sob ocupação dos EUA, Trump garantiu que as acusações de interferência iraniana se tornassem um problema secundário.

É improvável que a morte de Soleimani, chefe da Força Quds da Guarda Revolucionária do Irã desde 1998, seja um golpe paralisante nas operações iranianas no Iraque, Síria e Líbano. Soleimani foi considerado um hábil negociador da política externa militarizada do Irã, construindo poderosas forças paramilitares pró-iranianas enraizadas nas comunidades xiitas locais. Mas parece ter julgado mal a natureza dos últimos protestos iraquianos e gerado um grande problema para o Irã, que não existia antes.

Possivelmente, Trump foi enganado pela recepção positiva que recebeu quando Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico, foi morto por forças americanas na Síria em outubro do ano passado. Mas al-Baghdadi era o chefe universalmente execrado de uma organização terrorista derrotada, cuja morte pessoal simbolizava a vitória dos EUA. Transformar Soleimani e al-Muhandis em mártires provavelmente fortalecerá a posição iraniana no Iraque, em vez de enfraquecê-la.

Continua incerto quais serão precisamente as consequências dos assassinatos, mas a disputa pelo Iraque entre os EUA e o Irã certamente se intensificará. Isso não é vantajoso para os EUA, que têm a mão mais fraca do país. Como o International Crisis Group previu no início desta semana: “Desafiar diretamente o papel do Irã em um cenário onde Teerã tem uma influência muito maior quase certamente acabará mal para Washington”.

O Globo