Bolsonaro inviabiliza Comissão de Mortos e Desaparecidos
Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo
O novo regimento interno da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, publicado na quinta-feira no Diário Oficial da União, retirou duas das principais funções do colegiado: a emissão de atestados de óbito de vítimas da repressão na ditadura militar e a possibilidade de buscas por desaparecidos com base em novos requerimentos. As mudanças, segundo a ex-presidente da comissão, a procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, “acabam com o trabalho que estava sendo desenvolvido”, considerado por ela um débito histórico do Estado brasileiro. A comissão é vinculada ao ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de Damares Alves.
As mudanças no funcionamento da comissão também levantam a discussão sobre a possibilidade de que casos envolvendo militares mortos no período entre 1964 e 1985 possam ser analisados pelo colegiado. A resolução estabelece a competência da comissão para reconhecer desaparecidos que estejam fora da lista de vítimas incluídas na Lei 1.940, de 1995, contendo apenas militantes políticos vítimas da repressão.
— Por causa desse ponto temos interpretado que membros da comissão possam atuar na tentativa de promover algum tipo de reparação para o que eles consideram vítimas do terrorismo de esquerda e que tenham sido vítimas da luta armada. Além é claro do contexto mais amplo do que tem acontecido no conjunto de políticas públicas, de memória e de reparação no governo Bolsonaro — afirma Lucas Pedretti, do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais.
Em nota, o atual presidente da comissão, Marcos Vinicius Pereira, nomeado por Bolsonaro, disse que o novo regimento está “corrigindo irregularidades que vinham sendo praticadas com base no regimento anterior, mas que não estavam previstas na lei de regência”. Afirmou também que o texto “deu fim aos procedimentos adotados erroneamente pela comissão, como emitir atestado de óbito, o que não é uma atribuição do colegiado”.
Apesar de avaliar as novas regras como um esvaziamento das funções do colegiado e de restrição da reparação dos familiares dos mortos, Eugênia não vê o risco de inclusão de militares no escopo da comissão. Segundo ela, na criação da lei que estabeleceu o grupo, fica claro o objeto da comissão: a morte de pessoas por agentes do Estado.
— A Lei 1.940 já saiu editada com o anexo 1 com uma lista com mais de cem nomes de pessoas que já foram reconhecidas como vítimas, mas já se sabia da existência de outras pessoas que foram mortas pela ditadura. Por isso criaram a comissão, para analisar outros nomes que não estavam nessa lista. Além disso, a comissão foi criada para pagar a indenização aos familiares e localizar os corpos de integrantes de movimentos políticos de resistência à repressão do estado. Portanto, foi criada com um objeto claro — afirmou Eugênia, exonerada em agosto do ano passado após a comissão emitir o atestado de óbito do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, Fernando Santa Cruz: — O drible que pode acontecer é considerar extinta a atividade da comissão porque ela já teria cumprido a sua finalidade e o prazo para novos requerimentos esgotado.
Ao alterar o regimento, o governo estabeleceu que a comissão só deveria atuar nos casos requeridos no prazo de 120 dias após a sanção da lei, em dezembro de 1995, e da última atualização da legislação em 2004.
— O que estão fazendo é uma restrição imensa da atividade de reparação dos familiares, porque há muito tempo que toda jurisprudência diz que esse tipo de reparação por parte do Estado não está sujeito a prazos prescricionais e decadenciais. O Estado reconhece que matou, reconhece que tem que dar indenização, mas limita no tempo — afirma Eugênia.
O diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, afirma que o novo regimento da comissão é “completamente contra a lei” que criou o colegiado, abre espaço para interpretações fora da alçada de reparação de vítimas da ditadura. Ele acredita que o Judiciário, o Legislativo, Ministério Público e a sociedade civil devem se posicionar contra as mudanças.
— Não faz qualquer sentido. É completamente contra a lei que cria a comissão e vai em desacordo com os tratados internacionais que o Brasil é signatário. Nada que nos surpreende, pois é coerente com o presidente, que se elegeu fazendo apologia à tortura e tendo como herói um dos maiores torturados do país, o Brilhante Ustra. Essas mudanças vão na linha de esvaziamento total da comissão. E o que é mais grave é que ele tenta colocar que procedimentos de busca e localização fora do escopo da responsabilidade do Estado. Esse é um dever do Estado.
Sottili diz ainda que o governo federal não “tem qualquer compromisso com a democracia” e “com a reparação histórica de regimes autoritários”.
— É um governo que não tem qualquer compromisso com a democracia, com a reparação histórica de regimes autoritários. É um governo que não tem apreço por comissões, conselho, participação da sociedade. Cabe à sociedade brasileira, seja por meio da Justiça e do Legislativo, do Ministério Público, com a pressão da sociedade civil obrigar que o governo cumpra a Constituição e os mecanismos internacionais.
Além de exonerar Eugênia, Bolsonaro decidiu trocar outros três dos sete integrantes da comissão. A procuradora foi substituída por Marco Vinicius Pereira de Carvalho, advogado, filiado ao PSL e então assessor da ministra da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Os outros três integrantes deram lugar a um coronel reformado e um oficial do Exército e a outro filiado do então partido do presidente.
As mudanças foram possíveis com a mudança nos requisitos para a escolha de três dos sete membros da comissão. O presidente da República devia escolher três pessoas de reconhecida atuação na área. O governo alterou o regimento à época retirando a obrigação. As outras quatro vagas são de representantes da Câmara dos Deputados, do Ministério Público Federal, do Ministério da Defesa e de Familiares dos Desaparecidos.