Braskem criou “bairros-fantasmas” em Maceió

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Foto: BETO MACÁRIO

Não fosse pela dúvida sobre o placar final do jogo, seria possível dizer que Jânio se lembra perfeitamente daquele dia em que a terra tremeu sob seus pés. “Foi no início de 2018. Lembro até que a seleção estava jogando e nós estávamos almoçando quando sentimos aquela coisa ruim”, conta. “Era uma coisa muito ruim mesmo, que durou alguns segundos, porque se tivesse durando alguns minutos, o mundo tinha se acabado. Foi horrível.” Trabalhador da construção civil, José Jânio Profério da Silva, 49 anos, diz nunca ter visto nada parecido. Mas o pior viria só no dia seguinte: “Depois do tremor, escureceu e não percebemos nada de diferente. Foi quando começou a amanhecer, no dia seguinte, que vi a luz entrando pelas frestas.” Ele se refere à rachadura na parede do quarto, que vai do chão ao teto, que apareceu após o tremor de terra em Maceió.

A casa de Jânio é simples, com um portãozinho de grade na frente, uma sala espremida por um sofá e uma televisão, cozinha e um corredor onde ficam duas camas de casal e um banheiro. Ele conta com orgulho que foi construindo aos poucos seu pedaço de chão, hoje, rachado no meio, por onde entra com força a luz do sol escaldante de Alagoas. Assim como ele, seus vizinhos dormem sobre pisos fissurados e paredes rachadas, em pior ou menor escala. Mais de 30.000 pessoas em três bairros da capital alagoana —Pinheiro, Mutange e Bebedouro― vivem em risco por causa da mineração.

A área é próxima a uma zona de exploração de sal-gema, um tipo de cloreto de sódio usado na produção de soda cáustica e PVC, realizada pela gigante petroquímica Braskem. Entre fevereiro e março de 2018, fortes chuvas, seguidas pelo tremor de terra narrado por Jânio, agravaram rachaduras e fissuras em milhares de imóveis, abrindo crateras nas ruas e afundando pisos de casas.

Foi apenas quase um ano depois do tremor que veio a público um documento do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), empresa pública ligada ao Ministério das Minas e Energia, que concluiu que a principal causa para o surgimento das rachaduras nos imóveis foi a atividade de exploração do sal-gema pela empresa, controlada pelo grupo Odebrecht e com participação da Petrobras. Segundo o relatório, a exploração, feita de forma inadequada, desestabilizou as cavernas subterrâneas que já existiam na região, causando o afundamento do solo e as rachaduras.

Quando o relatório foi divulgado, centenas de famílias já haviam sido obrigadas a deixar suas casas por risco de desabamento e a Braskem já havia suspendido a extração de sal nos mais de 30 poços do local. Os moradores já se haviam organizado frente ao medo de que tudo afundasse de vez e pressionavam a empresa. Embora não se tenha comprovado ligação direta do tremor com a exploração de sal, o pequeno abalo de 2,5 na escala Richter marcou o início de um imbróglio judicial sobre as responsabilidades do caso envolvendo o Ministério Público local e Federal, o Tribunal de Justiça, a Braskem e até o Supremo Tribunal Federal.

Pelos bairros, as casas abandonadas exibem o roteiro dessa história. É fácil encontrar muros pedindo “justiça”. Portões levam frases como “o sonho da casa própria virou meu maior pesadelo. Nós jamais esqueceremos disso” ou “aqui morava uma família”. As ruas acidentadas abrigam casas desde as mais simples, como a de Jânio, até mais abastadas, como qualquer bairro de classe média brasileiro. Mas centenas estão vazias.

No último dia 3 de janeiro, a Braskem fechou um acordo bilionário com as autoridades para a desocupação de imóveis e a realocação das famílias —a empresa frisou que “as obrigações assumidas não significam o reconhecimento de responsabilidade sobre a ocorrência de rachaduras nos bairros”. O acordo prevê a abertura de uma conta, por parte da empresa, com um valor mínimo de 1,7 bilhão de reais para cobertura de despesas como auxílio-aluguel, mudança e danos morais e materiais.

A Braskem calcula que aproximadamente 17.000 pessoas, ocupantes de 4.500 casas, devem receber essa indenização para que deixem o local. Caso esse valor não seja suficiente para cobrir as despesas, a empresa deverá fazer aportes financeiros que garantam, no mínimo, um saldo de 100 milhões de reais até que todos os atingidos sejam contemplados. Em paralelo, os imóveis serão comprados e demolidos pela Braskem, que decidirá, “em conjunto com os órgãos públicos”, o destino final da área, segundo informou sua assessoria de imprensa.

Muitos moradores já tiveram de deixar suas casas antes mesmo que esse acordo saísse. Outros, terão de se mudar agora. Há ainda uma parte que resiste em deixar o local. São os que até tem paredes ou pisos com fissuras, e foram orientados —e não obrigados— a deixar seus imóveis. Raquel Coelho de Barros, 58, funcionária pública aposentada, é uma delas. Moradora do Pinheiro há mais de 40 anos, ela, que hoje vive com a mãe de 96 anos que sofre de Alzheimer, conta nos dedos os vizinhos que ainda permanecem no bairro. “Se você andar por aqui à noite, vai achar que é um bairro fantasma. Não tem mais ninguém”, diz.

Não fosse pelo maquinário pesado espalhado pelas ruas, a imagem da aposentada seria uma descrição precisa do bairro. Tratores, caminhões e escavadeiras garantem o movimento onde carros já não podem passar porque as ruas estão interditadas para o trânsito. Contratadas pela Braskem, as máquinas fazem trabalhos compensatórios no solo.

As operações de exploração da sal-gema em Alagoas foram iniciadas em 1975, pela então empresa Salgema. Vinte anos mais tarde, em 1995, a companhia passou a ser controlada pelo conglomerado que deu origem à Braskem, criada em 2002. A empresa, por meio de nota, informa que a exploração dos 35 poços em Maceió está “definitivamente encerrada”, mas disse que está pesquisando a exploração da matéria-prima “em áreas rurais do Estado”. A Braskem garante que as licenças ambientais estavam em dia durante o período em que os poços estavam operantes, mas não soube dizer, até a publicação dessa reportagem, quando havia sido a última renovação da licença, nem como funciona a periodicidade para se requerer tal permissão.

As licenças ambientais são concedidas por órgãos municipais, estaduais e federais, que avaliam documentos, projetos e estudos ambientais apresentados pela própria empresa interessada em explorar. Segundo o Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA), o processo de licenciamento da Braskem se deu em 1986. Na análise de impactos ambientais, a empresa afirmava que “não serão provocados alterações ou comprometimentos ambientais de nenhuma forma, seja no aspecto visual, sonoro, químico ou físico. Da mesma forma, não serão afetados nem o ar, solo, subsolo e os recursos hídricos, durante a fase de produção”. O IMA, cuja sede é um dos equipamentos públicos que está na área de risco, ainda informou, por meio de uma nota técnica, que “desde 2015, todos os trabalhos de fiscalização são realizados sempre considerando o porte e o potencial poluidor da empresa”. Procurada, a Agência Nacional de Mineração não respondeu aos questionamentos até a publicação dessa reportagem.

No mês em que se completa um ano da tragédia provocada pela mineradora Vale em Brumadinho, a Braskem, forçada pela Justiça, agora corre contra o relógio para evitar um desastre. Na semana passada, Tutmés Airan, presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, fez um apelo para que os moradores deixem suas casas nas áreas de risco. “Tem que desocupar. Há um risco real”.

El País