Com Bolsonaro, fundamentalistas religiosos querem ditar políticas públicas

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Foto: Reprodução

O avanço da pauta conservadora e de medidas de interesse de igrejas não acontece ao acaso – segue um roteiro de expansão de ideias puritanas deliberadamente traçado para influenciar políticas públicas, de acordo com a socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Maria das Dores Campos Machado, que estuda o tema há mais de 15 anos.

Ao comentar reportagem do Estado que mostra que o presidente Jair Bolsonaro quer subsidiar conta de luz de grandes templos religiosos, a socióloga afirma que o que classifica como “transferência de recursos públicos para determinados grupos ou segmentos sociais” acontece desde antes do atual governo.

“Primeiro, as ideias deles são defendidas por institutos e ONGs, criados para disseminar valores ligados à doutrina e à moralidade cristã. Depois esses valores aparecem como iniciativa pública”, explicou ao Estado. Ela cita a campanha de abstinência defendida pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

As iniciativas, segundo Maria das Dores, muitas vezes partem de atores do movimento republicano conservador dos Estados Unidos. Um exemplo de organização do tipo é o grupo Capitol Ministries, que é financiado pelo vice-presidente dos EUA, Mike Pence, e fez em 2019 um evento no Congresso brasileiro.

A seguir, a entrevista:

A crença nos partidos caiu. Igrejas evangélicas estão ocupando uma parte do vácuo deixado?
A descrença com partidos não é só brasileira, ocorre em vários países. Mas as igrejas crescem e aproveitam muito os vazios das instituições na sociedade brasileira. Então a crise no Brasil favorece as igrejas evangélicas. Não são só as pentecostais e neopentecostais que têm influência nesse governo. Um grupo muito importante nos últimos anos tem sido o dos batistas, que estão presentes no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A titular, Damares Alves, é batista.

Esses grupos são conservadores?

No Brasil, os neopentecostais ganharam uma certa hegemonia entre as igrejas evangélicas. Além disso, vários segmentos dos batistas hoje são pentecostalizados. Com a gestão Bolsonaro, há uma forte presença desses conservadores evangélicos na máquina do Estado, trabalhando como assessores, seja no Planalto ou na Esplanada.

E como vem sendo a atuação da Damares na sua avaliação?

Ela é a segunda ministra de maior aprovação no governo, ficando atrás apenas de Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública) e superando o presidente Jair Bolsonaro, de acordo com o a pesquisa Datafolha de dezembro (o levantamento mostrou que 53% aprovam a gestão de Moro, 43% aprovam o trabalho de Damares e 30% avaliam bem o presidente). Ela vem implementando uma política regressiva no campo dos direitos humanos, da educação sexual e de gênero. No entanto, é a segunda mais bem avaliada.

Nos Estados Unidos, estudos mostram que o crescimento da direita religiosa foi orquestrado. O mesmo acontece aqui?

Desde que Donald Trump foi eleito presidente dos EUA, cresceu muito a circulação de valores e atores do movimento republicano conservador – que tem uma base religiosa muito forte – aqui na América Latina e no Brasil. Entrevistei a Damares em 2011 para uma pesquisa (quando ela era auxiliar legislativa). Ela nos contou que tinha recebido alguns americanos que gostariam de aprovar uma proposta de abstinência na educação sexual de adolescentes. Naquele contexto, ela não achou interessante. Curiosamente, agora ela está desenvolvendo um programa de combate a gravidez na adolescência através de estímulo a abstinência sexual de jovens brasileiros.

Quais valores são disseminados?

Nos últimos anos, tem crescido muito a influência da pauta dos religiosos norte-americanos no Brasil. É uma disseminação de valores puritanos. Durante a campanha presidencial brasileira, vários evangélicos ligados diretamente à equipe de Donald Trump – eram evangélicos sionistas, ou seja, ligados à defesa do Estado de Israel – vieram a uma comemoração em Belo Horizonte e fizeram uma gravação em defesa da campanha de Bolsonaro.

E também há aproximação com o Poder Legislativo?

Hoje em dia, há parceiros brasileiros de grupos como esse no Congresso. O grupo Capitol Ministries, que é financiado pelo vice-presidente dos EUA, Mike Pence, fez em 2019 um evento no Congresso brasileiro. Eles recrutaram alguns pastores brasileiros para coordenar o processo de formação de alianças com legisladores. Primeiro, as ideias deles são defendidas por institutos e ONGs, criados para disseminar valores puritanos ligados à doutrina e à moralidade cristã. Depois esses valores aparecem como iniciativa pública.

Então podemos esperar um avanço cada vez maior dessas pautas?

Podemos esperar que os segmentos evangélicos queiram ampliar as suas prerrogativas no campo político. É de se esperar que esse segmento queira mais. Alguns estão disputando espaço através de relações clientelistas. A Igreja Universal apoiou Lula, apoiou Dilma Rousseff e agora apoiou Bolsonaro. Há um deslocamento para a direita.

O ‘Estado’ mostrou que Bolsonaro quer conceder subsídio na conta de luz de templos religiosos. O que isso revela?

É transferência de recursos públicos para determinados grupos ou segmentos sociais. Estão deixando de cobrar de alguns o que é cobrado de outros. Isso acontece desde antes do governo Bolsonaro. O governo Dilma pegou recursos públicos destinados ao combate às drogas e os transferiu a comunidades terapêuticas ligadas a grupos religiosos, mas isso ocorreu sem fiscalização, transparência e controle. As auditorias feitas pelo Conselho Federal de Psicologia resultam em relatórios com muitas denúncias sobre essas comunidades.

Estadão