Política ambiental de Bolsonaro derreteu imagem do Brasil no exterior
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No dia 13 de agosto, a embaixada brasileira em Londres amanheceu manchada de vermelho, repleta de pichações e cercada por ativistas. O Brasil, definitivamente, estava sob os holofotes.
Foi tópico global no Twitter e ganhou manchetes em todo o mundo, uma exposição que não foi detonada apenas pelo aumento dos incêndios no Centro Oeste e Norte do país, em agosto, mas também por uma guinada no discurso e nas políticas do governo brasileiro para o meio ambiente.
Em 2019, o país deixou de ser retratado pela imprensa internacional como uma das lideranças no combate ao aquecimento global para, aos poucos, ser visto como nação que ameaça os esforços globais de preservação do ecossistema.
Mas como ocorreu essa mudança na imagem do Brasil no exterior? E quais as consequências políticas, econômicas e diplomáticas disso para o país?
Desde 1992, quando sediou a primeira conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, o Brasil se apresentava como liderança na defesa de metas globais ambiciosas de redução de emissões de gases poluentes.
Embora sempre tenha feito pressão para que países desenvolvidos assumissem uma fatia maior da responsabilidade e compensassem financeiramente nações emergentes pela contribuição que fizessem, os governos brasileiros, de 1992 para cá, sempre adotaram um discurso de compromisso ambiental.
Isso ajudou a consolidar o chamado soft power brasileiro. O termo se refere ao uso de valores políticos e culturais — sem uso de coerção, poder econômico ou militar — para tentar exercer influência em decisões internacionais por meio de sua capacidade de persuasão.
Especificamente no campo ambiental, o papel de liderança do Brasil colocou o país em posição de destaque em negociações com grandes potências, como União Europeia e Estados Unidos. O Brasil era frequentemente escolhido para sediar e presidir eventos internacionais, como a Rio+20, em 2012.
Seria no Brasil, inclusive, a COP 25, a conferência deste ano das Nações Unidas sobre mudanças climáticas. Mas, em novembro de 2018, o governo Michel Temer, após pedido do recém-eleito presidente Jair Bolsonaro, cancelou o evento no Brasil. A conferência acabou sendo transferida para Madri, na Espanha.
Além de perder a prerrogativa de presidir o evento, que contou com lideranças das maiores economias do mundo, o Brasil decidiu enviar uma delegação pequena para as negociações.
“O papel do governo brasileiro mudou muito. O Brasil incialmente ia ser sede da COP 25, mas o presidente Bolsonaro decidiu não seguir adiante com isso. Houve uma delegação bem menor do Brasil do que o normal”, conta o repórter de meio ambiente da BBC News, Matt McGrath, que cobriu a COP 25.
“Não havia um stand do Brasil para falar das questões ambientais do país e o governo só mencionou nos debates questões relacionadas a agricultura e crédito de carbono. Não discursou sobre outros temas. Então, foi uma presença muito menor que a desempenhada no passado.”
Além disso, diferentemente da posição tradicional do Brasil nas últimas conferências sobre clima — de cobrar metas ambiciosas dos países ricos e se voluntariar a cortar emissões —, o país se juntou a EUA, Índia e China, na tentativa de obstruir as negociações.
“O Brasil se aliou com o grupo de países que chamamos de países com mentalidade similar, que inclui Índia e China. Mas também se juntou a países como Estados Unidos e Austrália, que resistem a grandes compromissos. Então, ele tendeu a se alinhar aos grandes emissores de carbono e aos países emergentes em emissões”, conta McGrath.
“Essas nações, juntamente com o Brasil, formaram um bloco contrário a avanços nas negociações. Esse bloco não queria assumir novos compromissos de corte de emissões de carbono. Por isso, muitas pessoas consideraram que eles estavam cumprindo um papel obstrucionista.”
Depois da conferência, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ainda publicou uma foto irônica no Twitter, comendo um prato enorme de carne e dizendo que o churrasco era para “compensar as emissões” de carbono do Brasil durante a COP 25. A redução no consumo global de carne é defendida por ambientalistas para ajudar no corte de emissão de gases poluentes.
A mudança clara no discurso ambiental brasileiro não passou despercebida no exterior. Foram muitas as manchetes associando o Brasil a queimadas e desmatamento.
Em 2 de agosto, por exemplo, a revista britânica The Economist trouxe na sua capa uma imagem de toco de árvore com o formato do mapa do Brasil acompanhada de um título dramático “Vigília da morte para a Amazônia”.
O texto da reportagem dizia que o presidente Jair Bolsonaro “deixou claro para os infratores (desmatadores) que eles não têm nada a temer”.
Desde então, outros jornais de peso fizeram reportagens críticas à guinada na política ambiental do Brasil. Em 5 de dezembro, o americano The New York Times publicou uma ampla matéria com o título: “A Amazônia está completamente sem lei — a floresta após um ano de governo Bolsonaro”.
Procurado pela BBC News Brasil, o Itamaraty disse que “versões” sobre a política ambiental do governo “que circularam por veículos da imprensa nacional e internacional desinformaram o público”.
Segundo o Ministério de Relações Exteriores, a ação do governo brasileiro na COP 25 de Madri “buscou defender os interesses do Brasil, que vê o não cumprimento dos compromissos de financiamento de programas de preservação por parte dos países desenvolvidos como extremamente prejudicial aos interesses da preservação ambiental.”
Mas especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a mudança no discurso ambiental do governo brasileiro já produziu efeitos na imagem do Brasil no exterior.
E essa deterioração do “soft power brasileiro” na área ambiental pode trazer consequências para investimentos diretos, negociação de acordos comerciais e para o nosso setor exportador.
O professor Frederico Bertholini, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), destaca que o primeiro impacto da mudança na política ambiental do governo brasileiro é a perda de repasses diretos de países estrangeiros para políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável no Brasil.
“Do ponto de vista da cooperação internacional, isso (política de responsabilidade ambiental) garantia recursos para o Brasil, como o Fundo da Amazônia. Outros países injetavam dinheiro nas políticas ambientais brasileiras”, lembra Bertholini.
“Então tem uma dimensão comercial de curto prazo, mas também cooperativa no longo prazo, que abria espaço para recursos externos voltados a políticas internas.”
O Brasil deixou de receber R$ 299 milhões nesse ano que iriam para o Fundo da Amazônia, porque Noruega e Alemanha suspenderam os repasses diante da ideia do governo de usar o dinheiro para pagar um bônus a produtores rurais que cumprem a lei e não desmatam além do percentual máximo previsto.
O dinheiro do fundo, que ficou esvaziado em 2019, era usado para projetos de reflorestamento e para a compra de equipamentos das equipes de bombeiros dos Estados do norte do país, como um avião que foi muito usado pelo governo de Rondônia no combate aos incêndios de agosto.
O evento que mais gerou manchetes negativas para o Brasil em 2019 foram os incêndios na Amazônia, em agosto.
Na época, o presidente Bolsonaro primeiro minimizou os dados da Nasa (Agência Especial dos EUA) e do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) que apontavam para o maior número de focos de incêndio no Brasil em nove anos, desde 2010.
Depois, ele sugeriu que ONGs internacionais pudessem estar por trás do fogo, em retaliação a uma redução nos repasses de verbas federais para essas instituições.
“É um indício fortíssimo de que esse pessoal de ONG perdeu a teta deles. É simples”, disse Bolsonaro ao ser questionado sobre o aumento de cerca de 80% nos focos de incêndio em agosto de 2019, na comparação com o mesmo período de 2018.
Enquanto o governo questionava os dados oficiais e especulava sobre os autores dos incêndios, o caso foi ganhando a atenção do mundo, até que o presidente da França, Emmanuel Macron, decidiu levar o tópico das queimadas para discussão na cúpula do G7, sem a presença do Brasil.
Esse encontro, realizado em Paris, reuniu sete das maiores economias do mundo, como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. Foi só depois de ampla repercussão nacional e internacional que o governo brasileiro decidiu enviar tropas do Exército para combater os incêndios. A essa altura, o desgaste internacional já tinha se concretizado.
“A atenção do mundo de repente se voltou para Bolsonaro, que reagiu de maneira a inflamar as preocupações com a Amazônia. Isso tornou Bolsonaro e o Brasil alvos internacionais”, destacou à BBC News Brasil o professor de Relações Públicas Internacionais Christopher Sabatini, da Universidade de Columbia, em Nova York.
“A situação poderia ter sido explicada e disseminada de maneira muito mais diplomática, de modo a não humilhar o Brasil no palco internacional da maneira como ocorreu”, completou Sabatini, que também é consultor para América Latina da Chatham House, um dos institutos de pesquisa mais prestigiados do Reino Unido.
E essa deterioração da imagem do Brasil passou a ameaçar os produtos brasileiros. Grandes marcas como a Timberland e a H&M suspenderam temporariamente, por exemplo, novas compra de couro brasileiro até receberem “esclarecimentos” sobre a sustentabilidade da pecuária do país.
Produtores rurais que sequer produzem na região amazônica e que adotam há anos práticas sustentáveis de produção passaram a temer boicotes às exportações brasileiras.
“A inexistência de uma política ambiental mais comprometida desagrada tanto produtores rurais quanto ambientalistas, porque esse impacto econômico no curto prazo, de não ser ambientalmente responsável, pode comprometer o mercado de exportação agrícola, e pode comprometer os recursos de ações de políticas públicas com os quais os ambientalistas estão preocupados”, diz o professor Frederico Bertholini, da UnB.
Perguntado pela BBC News Brasil se as ameaças de boicote a produtos brasileiros preocupam, o Ministério de Relações Exteriores disse que “não houve, nem há, qualquer boicote a produtos brasileiros.”
Em junho de 2019, o governo anunciou como grande vitória de sua estratégia de política externa a assinatura de um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Fazia 20 anos que os termos eram negociados sem nunca chegarem a uma conclusão. A avaliação quase unânime era de que o acordo traria benefícios econômicos de longo prazo para o nosso país.
Segundo o Ministério da Economia, ele deve gerar para o Brasil um aumento no Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 336 bilhões em 15 anos, com potencial de chegar a R$ 480 bilhões, se forem levados em conta aspectos como a redução de barreiras não tarifárias.
Mas o acordo ainda precisa ser ratificado pelos parlamentos europeus e os legislativos dos países do Mercosul. E a atual política ambiental do Brasil pode ser um obstáculo para que isso aconteça.
Antes de firmar o acordo, a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, teve que enfrentar a resistência de parlamentares que diziam que a União Europeia estaria chancelando a política ambiental brasileira se firmasse o tratado com o Mercosul.
Ao ser questionada, numa sessão do Parlamento em junho, ela defendeu o acordo, mas disse que considerava “dramática” a atuação do governo brasileiro, na área ambiental.
“Você pode ter certeza de que eu, assim como você, vejo com preocupação muito grande a questão da atuação do novo presidente brasileiro. E, na medida do possível, vou usar a oportunidade durante a cúpula do G20 para falar diretamente sobre o tema, porque vejo como dramático o que está acontecendo no Brasil”, disse Merkel, em sessão televisionada do Legislativo alemão.
Bolsonaro rebateu a declaração quando estava no Japão para a cúpula do G20, grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo. “Nós temos exemplo para dar à Alemanha sobre meio ambiente. A indústria deles continua sendo fóssil, grande parte de carvão, e a nossa não. Então, eles têm a aprender muito conosco!”, disse ele ao ser perguntado por jornalistas sobre a fala de Merkel.
No final das contas, o acordo acabou sendo firmado depois que o Brasil concordou com uma cláusula que dizia que os países do Mercosul e da União Europeia deveriam adotar compromissos concretos para viabilizar o Acordo de Paris — que prevê metas de redução dos gases do efeito estufa.
O problema é que, depois disso, principalmente depois dos incêndios na Amazônia em agosto, a relação entre o governo brasileiro e líderes europeus azedou. Bolsonaro e o presidente francês, Emmanuel Macron, trocaram ofensas após o francês sugerir que a Amazônia seria propriedade de todos, não do Brasil.
Bolsonaro acusou Macron de tentar usar uma “questão doméstica” para tirar proveito político. E o presidente francês disse que o presidente brasileiro mentiu durante as negociações do acordo do Mercosul. A troca de farpas entre os dois ganhou destaque, mas as dificuldades ultrapassam as fronteiras da França.
Agora, vários países europeus estão usando a questão ambiental para se opor ao tratado. Parlamentares de Áustria, Irlanda, França e Alemanha já defenderam votar contra abrir o comércio com o Mercosul.
É importante lembrar que existem também interesses comerciais envolvidos nessas posições. Nações que competem com o Brasil no setor da agricultura, por exemplo, temem que o acordo com o bloco sul-americano abra caminho para que produtores europeus percam mercado para alimentos exportados pelos países da América do Sul — e o Brasil seria a maior ameaça.
Para o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, a “comunicação falha” do governo serviu de combustível para que países concorrentes do Brasil no setor agrícola utilizassem as queimadas para atacar as exportações brasileiras.
“A gente vê que a comunicação do governo brasileiro nesse caso não foi das melhores. Se tivesse tomado medidas anteriormente, não estaríamos na situação de hoje. A gente tem que admitir que a comunicação falhou”, disse Castro em entrevista à BBC News Brasil.
Por outro lado, há também toda uma pressão da opinião pública, dos consumidores e de ambientalistas, que resistem a negociar e comprar produtos de países que não se comprometem com o combate às mudanças climáticas.
“Para se integrar com essas economias no cenário atual, não basta só você ter produtos que eles queiram comprar. Você precisa também demonstrar que você tem uma atitude em relação à questão climática e à pobreza que seja condizente com o que essas outras economias demandam”, disse à BBC News Brasil José Alexandre Scheinkman, professor emérito da Universidade de Princeton, nos EUA.
À BBC News Brasil, o Ministério de Relações Exteriores disse que o Brasil “manteve em 2019 todos os seus compromissos internacionais no campo ambiental, tendo sido um dos países que apresentou maior avanço no cumprimento de metas do Acordo de Paris e da Agenda 2030”. O Itamaraty afirmou ainda que o governo não alterou, por enquanto, as leis ambientais.
“A legislação ambiental do Brasil, inalterada em seus aspectos centrais em 2019, é das mais avançadas do mundo. Várias iniciativas do governo, como a Operação Verde Brasil, (o envio do Exército para combater os focos de incêndio na Amazônia) aumentaram o nível de combate a queimadas e a crimes ambientais no Brasil “, afirmou, em nota.
Embora não tenha havido mudanças na lei, levantamento da BBC News Brasil revelou que desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, as multas ambientais caíram significativamente.
A queda no número de autuações coincide com um aumento dos registros de desmatamento e de incêndios florestais em 2019. Considerando todos os tipos de infração ambiental em todo o país, o Ibama diminuiu em 29,4% as autuações de janeiro ao final de agosto deste ano, quando comparado com o mesmo período de 2018.
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, ainda que a política ambiental possa arranhar a imagem do país no exterior, o governo está mais preocupado em manter um discurso que atenda ao público interno — a base eleitoral de Bolsonaro.
Seria um cálculo mais político, de olho nas próximas eleições, do que necessariamente econômico ou de política externa de longo prazo.
“Eu diria que ele está mais preocupado com o seu posicionamento interno do que com seu posicionamento na arena internacional”, avalia Frederico Bertholini, professor de Relações Internacionais e Política da Universidade de Brasília
“Inclusive, essa postura de se marcar como um dos países que impedem que haja um alinhamento de um acordo na COP 25, como um país que trava as negociações, ela foi celebrada em rede social. Então, acho que isso já dá o tom de como internamente é mais relevante para o governo se portar dessa forma do que pensar na arena internacional.”