Bolsonaro não queria fim de protestos por coronavírus

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Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS

“Puto da vida.” Foi assim que Jair Bolsonaro definiu seus sentimentos, em conversa via WhatsApp, com um aliado ao se dar conta de que o novo coronavírus poderia desmobilizar seus apoiadores para as manifestações de 15 de março. Três dias antes, o presidente fizera um pronunciamento oficial em que afirmara que os protestos em sua homenagem deveriam, “diante dos fatos recentes, ser repensados”, pois a saúde deveria ser “preservada”. A palavra “repensar” não fora pronunciada inadvertidamente. Bolsonaro não usara um termo mais contundente porque não queria que as manifestações fossem canceladas.

Ao perceber, nas redes sociais, sinais de desmobilização, mostrou-se irritado, em especial com a bancada de deputados do Rio de Janeiro. Um dos alvos de suas mensagens foi a deputada estadual Alana Passos (PSL-RJ), que divulgou em seu Instagram que a convocação para as ruas seria “adiada” após o pronunciamento do presidente. Ao ver a postagem, Bolsonaro irritou-se e rapidamente enviou mensagens tentando reverter a situação. Bolsonaro temia uma desidratação total do evento.

Por isso, imediatamente cobrou explicações da bancada fluminense e incumbiu o senador Flávio Bolsonaro de questionar os desertores — medida que foi cumprida no dia seguinte aos protestos. Flávio se reuniu com os parlamentares no Rio mesmo diante dos apelos do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para que, em todo o país, houvesse distanciamento social.

Para impedir o total fracasso no dia 15, em razão do risco sanitário apresentado pelo novo coronavírus, e diante da pressão de Jair Bolsonaro, membros do chamado “gabinete do ódio”, formado por auxiliares de Carlos Bolsonaro — alguns com cargo no Palácio do Planalto — passaram o fim de semana distribuindo no WhatsApp e nas redes sociais convocações para as ruas. Um levantamento das redes feito por um grupo de deputados federais e enviado a ÉPOCA apontou mais de 700 mil disparos feitos no dia 14.

Os parlamentares vão peticionar requerimentos para que a CPMI das Fake News apure se a origem das mensagens tem alguma relação com o entorno presidencial, como já se descobriu em requerimentos passados, em que uma conta nas redes sociais investigada por disparar mensagens de ódio tem como origem um IP do gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro.

Os relatos de parlamentares sobre os últimos movimentos do presidente no WhatsApp, quando as primeiras medidas contra o novo coronavírus vinham sendo implantadas no Brasil, reforçam o já confesso ceticismo de Bolsonaro em relação à amplitude da propagação da doença. Apesar das informações sobre a disparada no número de casos na Itália, que chegou a ter mais de 400 mortes registradas por dia, o presidente inicialmente não demonstrou temor de que o problema chegasse nessa magnitude ao Brasil. Primeiro, Bolsonaro referiu-se ao novo coronavírus como “fantasia” e “histeria”.

“ENQUANTO ESTAVA EM MIAMI, BOLSONARO ENVIOU A SEUS CONTATOS UMA MENSAGEM IRÔNICA SOBRE RODRIGO MAIA, AFIRMANDO QUE SUAS DECLARAÇÕES ERAM ‘DEVANEIOS’. ENTRE OS DESTINATÁRIOS ESTAVA O PRÓPRIO PRESIDENTE DA CÂMARA”

Na quarta-feira 18, já com um choque de realidade depois de ver 17 auxiliares contaminados, além dos primeiros mortos no país, ele convocou seus ministros para uma entrevista coletiva — todos portando máscaras. Ali, resignado em relação à gravidade do problema, foi questionado por jornalistas sobre sua chancela, estímulo e presença nas manifestações do dia 15, quando a doença já se propagava no Brasil. Bolsonaro negou que tenha feito qualquer incentivo para o evento ainda que haja vídeos do presidente conclamando as pessoas para as ruas em uma escala do voo presidencial para Miami, nos Estados Unidos, feita em Boa Vista, Roraima. Foi justamente depois dessa viagem oficial, em que o presidente e sua comitiva se encontraram com Donald Trump e seus auxiliares, que se deram os primeiros registros do novo coronavírus na alta cúpula do governo, como no caso do secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten.

Enquanto Bolsonaro estava em Miami, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), recebeu em seu WhatsApp a seguinte mensagem: “Você acredita que eu estimulo isso?”. Ela fora precedida por um link para uma reportagem e por um vídeo com um trecho da declaração que o deputado havia feito durante uma palestra no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. O emissor era o próprio presidente Jair Bolsonaro. Maia, que havia atribuído ao descompromisso do governo com a defesa da democracia as dificuldades para a realização de reformas e da retomada econômica no país, não titubeou. Escreveu acreditar, sim, que o presidente contribuía para um ambiente de insegurança. Ressaltou, entretanto, que, se dependesse do Congresso, as pautas que importam para o avanço do Brasil seguiriam em ritmo acelerado. Maia não sabia, mas havia sido apenas um dos destinatários da mensagem de Bolsonaro, que enviara o mesmo conteúdo a outros contatos de sua lista. O vídeo vinha acompanhado de um texto negritado, em tom irônico, que dizia que ali estavam o que chamou de “devaneios” de Maia.

A troca de mensagens entre Bolsonaro e Maia aconteceu em meio a mais um episódio de crise entre o Palácio do Planalto e o Congresso, a uma semana das manifestações que tiveram o Legislativo e o Judiciário como alvo. Ao participar do debate ao lado do ex-presidente tucano, Maia havia dito que pessoas próximas ao governo mantinham uma estrutura nas redes sociais para “viralizar o ódio”. O vídeo compartilhado por Bolsonaro tratava exatamente desse trecho da fala do presidente da Câmara. “Criam-se conflitos onde não existem em um país com 11 milhões de desempregados. Não podemos discutir uma coisa criada para viralizar o ódio, que é essa questão de parlamentarismo branco. Essas teses são criadas para arranjar alvos para que os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo sejam atacados. Isso só atrasa as soluções”, disse Maia.

O aparelho celular do presidente Jair Bolsonaro, um Galaxy Note, que opera com o sistema Android, funciona como uma espécie de central de informações verdadeiras e falsas sobre aliados, desafetos e mazelas do país. O teor de sua comunicação privada ganhou o interesse público depois que o presidente enviou a um grupo de amigos uma convocação para as manifestações do dia 15 de março, que tinham outros Poderes como alvo, num ato classificado como antidemocrático. Seu número acabou sendo trocado no dia seguinte. Como medida de segurança, Bolsonaro não voltou para todas as dezenas de grupos dos quais fazia parte — a maioria composto de correligionários, aliados políticos e apoiadores civis e militares. Mas isso não impediu que continuasse disparando mensagens a seus contatos.

O compartilhamento de vídeos pelo WhatsApp faz parte da rotina do presidente, que tem início todos os dias a partir das 4 horas da manhã, horário em que, geralmente, desperta. Para que a luz não incomode a primeira-dama, Michelle, Bolsonaro costuma dirigir-se ao closet em seu quarto, onde colocou uma escrivaninha, para dar início ao disparo de mensagens. Nelas, cobra atenção a projetos, divulga ações de seu governo, memes e, como no caso de Maia, demonstra incômodo e irritação. Bolsonaro escreve, mas prefere enviar áudios. Normalmente curtos de, no máximo, 30 segundos. Quando concorda com uma avaliação de um aliado enviada por mensagem, economiza nas palavras com um “ciente” ou “ok”. O silêncio, na maioria das vezes, é sinal de que Bolsonaro não compartilha daquele determinado entendimento.

Nessas mensagens, já chegou a pedir para ministros ficarem “mais calados”, “longe da imprensa”, “parar de dar entrevistas” a jornalistas. O WhatsApp do presidente não acusa o horário em que a mensagem foi lida (o tique não fica azul, só cinza). Como medida de segurança, ele também tem o hábito de apagar mensagens depois de lê-las. Bolsonaro não acatou as recomendações do ministro Augusto Heleno de parar de usar o WhatsApp ou o Telegram depois que conversas de autoridades foram hackeadas e enviadas ao site The Intercept. O general também é um ávido usuário do aplicativo.

O ex-deputado Alberto Fraga, amigo e confidente de longa data do presidente, tem uma incumbência extra: ele recebe diariamente mensagens endereçadas a Jair Bolsonaro e as repassa ao destinatário final. Essa interlocução é célebre entre os apoiadores do presidente, que veem no político uma forma de acessar mais facilmente o poder. No início de dezembro, Fraga recebeu um vídeo de um empresário de Uberlândia, Minas Gerais, pedindo ajuda para regularizar seu restaurante na BR-365, no quilômetro 650. Na gravação, Sidelmo Ribeiro, de 42 anos, conta que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tentou fechar o estabelecimento sob o argumento de que a construção seria irregular. Fraga repassou. Num domingo, no Palácio da Alvorada, depois de falar com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, Bolsonaro ligou para Ribeiro por videoconferência. Ficaram 19 minutos conversando sobre as instituições “aparelhadas pelo PT”. Bolsonaro disse ser difícil “trocar tudo”. Dias depois, o Ministério da Agricultura enviou ao Congresso uma medida provisória alterando os poderes do Incra na regularização fundiária, ainda que o texto não atendesse especificamente ao pleito de Ribeiro.

“A ROTINA DE DISPARO DE MENSAGENS DE BOLSONARO COMEÇA ÀS 4 HORAS DA MANHÃ. PARA QUE A LUZ NÃO INCOMODE A PRIMEIRA-DAMA, ELE VAI AO CLOSET E COMEÇA O ENVIO. COBRA ATENÇÃO A PROJETOS, DIVULGA AÇÕES DE GOVERNO, MEMES E, COMO NO CASO DE MAIA, DEMONSTRA INCÔMODO E IRRITAÇÃO”

Bolsonaro já trocou o número do telefone algumas vezes desde que assumiu a Presidência da República. Em meados do ano passado, abandonou de vez os antigos aparelhos, da época em que era deputado federal. Esses dois números voltaram para as operadoras, que revenderam para outros clientes.

As ligações e mensagens ao antigo dono chegam de várias regiões do país e em qualquer hora do dia ou da noite. A maioria o chama de “capitão” ou “caro presidente”. Há seis meses, o motorista Jânio de Souza, de 42 anos, recebe diariamente dezenas de mensagens. O morador de Planaltina, cidade a 45 quilômetros de distância de Brasília, herdou o número com final 9696 usado há anos por Bolsonaro. No início, Souza se divertia com a situação. Já fingiu ser assessor do presidente, contou já ter feito pegadinha ao receber ligação de ministros e agendado reuniões que nunca ocorreram. Mas, depois, as brincadeiras foram perdendo a graça e ele passou a se incomodar com o assédio. “Não sou o presidente”, passou a responder a qualquer estranho que mandasse mensagem. Ele disse que precisa limpar frequentemente o aparelho porque senão as mensagens de desconhecidos sobressaem às dele.

Outra adolescente, de 17 anos, sofre do mesmo mal. Quando se mudou de Minas Gerais para Brasília, no fim do ano passado, uma de suas primeiras providências na capital federal foi ir a uma loja comprar um chip com o prefixo 61, do Distrito Federal. O novo número do celular foi escolhido aleatoriamente. Ao ativar o telefone, passou a receber mensagens e ligações estranhas. A princípio, pensou que estavam lhe passando trotes e começou a bloquear os contatos. Um deles se apresentou como um ministro de Estado — mas ela disse a ÉPOCA não se lembrar do nome do interlocutor. Vários outros se apresentaram como políticos e jornalistas. “Esse número é do presidente Bolsonaro?” era a pergunta mais comum. Em conversa com a reportagem, a estudante do 3º ano do ensino médio, que pediu para não ser identificada, entendeu que seus nove dígitos são os mesmos que eram utilizados pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, em seus tempos de deputado federal. Com o novo cargo, ele desativou o contato em meados do ano passado. Mas, não importa o número, os velhos hábitos do presidente continuam.

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