Estado de sítio por coronavírus é inconstitucional

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Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

A circulação de notícias sobre a solicitação da Presidência da República para que alguns ministérios dessem parecer sobre eventual decreto de estado de sítio no país acende um sinal de alerta. Mesmo com o presidente Jair Bolsonaro afirmando “ainda” não considerar a medida em prática, é preciso avaliar suas implicações.

A Constituição coloca o estado de sítio como integrante, ao lado do estado de Defesa e da Intervenção Federal, do nosso “Sistema Constitucional de Crises”, usado para defender a ordem em momentos de anormalidade. Seu uso, no entanto, não é admitido se motivado pela vontade de governantes autoritários. Eles podem ser acionados apenas para manter ou restabelecer determinada situação com o mínimo de sacrifício de direitos e garantias dos cidadãos.

Decretar o estado de sítio seria drástico e acarretaria outros problemas, como a própria história já provou. A medida está em nosso sistema jurídico desde a Constituição de 1891. Durante os anos da Primeira República, seu uso por presidentes para governar foi frequente e abusivo. O chamado “constitucionalismo de sítio” autorizava a suspensão de garantias para reprimir manifestações sociais, como greves de trabalhadores.

A partir de 1988, foram criados limites jurídicos e institucionais para adequar o instrumento às regras da democracia. Assim, o estado de sítio passou a ter como um dos preceitos para seu acionamento a consideração do princípio estrito de necessidade. Ou seja: tal recurso se justifica apenas na ausência de outros meios menos danosos e traumáticos, sendo a última saída para a defesa do Estado de Direito.

Hoje, o decreto poderia restringir o ir e vir e impedir a possibilidade de reuniões. Também permitiria detenções, violação de correspondências, quebra de sigilo de comunicações, o fim da liberdade de imprensa, a busca e apreensão em domicílios, a intervenção em empresas públicas e a requisição de bens pelo estado.

Pelo artigo 137 da Constituição Federal, o estado de sítio só é possível em duas hipóteses. Uma delas é a “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”. A outra é a “declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Além disso, precisariam ser consultados o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, e sua autorização votada pelo Congresso Nacional.

Por tudo isso, seria inconstitucional e descabida a adoção de tal medida tal no contexto da pandemia do novo coronavírus. Não há um cenário de impossibilidade de atuação do Estado dentro das regras democráticas que legitime a suspensão da própria Constituição. Um estado de sítio só serviria como instrumento de fragilização de direitos e de garantias constitucionais, sem qualquer utilidade e efetividade para fazer frente às reais demandas e desafios que a situação impõe ao país. Sem recorrer ao extremo, as autoridades já conseguem impor as necessárias e acertadas restrições para conter a Covid-19.

Ações temporárias já aprovadas pelo Congresso Nacional, como o estado de Calamidade Pública, em conjunto com as portarias emitidas pelo Ministério da Saúde com foco estritamente sanitário e sem afetar a liberdade já autorizam a realização de gastos extraordinários e viabilizam respostas efetivas do Estado. O momento é de colaboração entre governos e Poderes. Não cabe ampliar o arsenal repressivo, mas sim a expandir a capacidade de assistência e de proteção social aos cidadãos –principalmente aos mais vulneráveis.

Estadão