Governo poderia intervir em hospitais privados por coronavírus

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Foto: Frederico Brasil/Futura Press/Folhapress

Com mais de 230 casos confirmados do novo coronavírus no Brasil, o governo do presidente Jair Bolsonaro vem adotando algumas medidas coordenadas entre o Ministério da Saúde e os governos estaduais, porém pode não ser o bastante e uma intervenção em hospitais privados pode ser necessária, segundo um especialista ouvido pela Sputnik Brasil.

Sem capacidade de produzir testes para toda a população e sem leitos hospitalares disponíveis para tratar um grande volume de possíveis vítimas da pandemia do coronavírus, o Brasil adotou a estratégia de impedir uma explosão no número de casos novos, impondo medidas restritivas à circulação de pessoas em ambientes de grande aglomeração.

Em entrevista à Sputnik Brasil, o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), fundador e primeiro diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), explicou que a estratégia é a mesma tentada na Itália – país com o maior número de vítimas fatais, atrás apenas da China, onde o coronavírus causou a primeira fase da epidemia.

“A curva de ocorrência de casos novos é uma curva muito alta e o que nós estamos tentando fazer, impedindo que as pessoas circulem, é fazer com que essa curva se espalhe mais, ou seja, dure mais tempo e por período de tempo pegue menos pessoas. Por quê? Porque eu tenho um problema de rede assistencial, eu não tenho leitos suficientes para atender todos os pacientes que teriam que ser atendidos se a curva for muito rapidamente para cima”, disse.

Especialistas acreditam que o governo brasileiro comete um erro ao adotar a mesma estratégia que fracassou na Itália. Contudo, para Vecina Neto, restam poucas alternativas neste momento além do que o país já vem fazendo. O desafio, explicou ele, é evitar o colapso do sistema de saúde, o que ajuda a entender a alta letalidade coronavírus em solo italiano.

“Nós vamos ter problemas de leitos de UTI no Brasil com certeza e nós não temos testes em número suficiente. A Fundação Oswaldo Cruz, que é quem faz os nossos testes, a fábrica de Biomanguinhos está funcionando a 100 km/h para produzir os testes, mas ela tem uma capacidade limitada de produzir alguma coisa em torno de 80, 100 mil testes por mês, e não tem testes para comprar no mercado internacional”, sentenciou.

A ideia de testar toda a população em larga escala, adotada em países como Coreia do Sul, China e Singapura, a fim de determinar os rumos da doença, foi elogiada pelo fundador da Anvisa, porém é impraticável neste momento no Brasil. Assim, se a situação se agravar no país, há grandes chances do governo federal ser instado a intervir em hospitais privados por leitos.

“A capacidade da rede hospitalar privada vai ter que ser colocada a reboque da regulação pública. Então os leitos do hospital [Albert] Einstein, do Sírio Libanês, do Samaritano, do Nove de Julho, etc., vão ter que ser administrados por um sistema público que vai destinar para esses hospitais pacientes do SUS [Sistema Único de Saúde], e o dinheiro nós vamos acertar depois. Não dá para discutir isso antes. Por isso que terá de ser uma decisão de Estado. O Estado decide intervir na rede privada para criar uma rede de leitos de UTI”, opinou Vecina Neto.
Todavia, o sanitarista ouvido pela Sputnik Brasil reforçou que crê na estratégia atual adotada pelo Ministério da Saúde, que caminha segundo o entendimento de grande parte da comunidade internacional no que tange à restrição do avanço do coronavírus em grande parte do planeta. Quanto mais devagar o COVID-19 se espalhar, menos a falta de recursos humanos, financeiros e hospitalares ficará evidente.

“Se o governo tiver vontade política, nós conseguiremos minimizar a falta de recursos, não sei se faremos frente à necessidade de recursos. Espero que sim”, acrescentou.

Outro aspecto que pode ser polêmico envolvendo o coronavírus em solo brasileiro é, segundo o especialista ouvido pela Sputnik Brasil, a desigualdade social. De acordo com a sua análise, Vecina Neto vê no país o maior experimento dos reais impactos de uma grave pandemia em um país de ampla diferença de renda e riqueza.

“O que nós não sabemos mesmo e nisso seremos pioneiros em mostrar para o mundo é quais são as consequências dessa pandemia em uma população com um nível de desigualdade que nós temos no Brasil. O que vai acontecer com essa população que vive na periferia dos grandes centros do país como São Paulo, por exemplo, que pega cinco conduções e que pega quatro, cinco horas de trânsito todo dia. O que vai acontecer com essa população?”, declarou.
“Veja, a transmissão pessoa para pessoa aqui em São Paulo. E no transporte coletivo não tem como ficar a 1 metro de distância um do outro, não tem como lavar a mão antes de sair do metrô, do ônibus, não tem um banheiro nos terminais, então isso é uma coisa que nós vamos aprender sozinhos, uns com os outros. [Álcool em gel] está caríssimo e não está disponível. Então esse negócio em uma população tão desigual como a nossa vai cobrar um preço que eu acho que será bastante alto, e aí não adianta dizer para fazer como em Singapura. Lá é um país que tem um outro tipo de distribuição da riqueza”, complementou.

A incerteza sobre o tamanho do impacto que o coronavírus trará para o Brasil é quase tão grande quanto o desconhecimento cientificamente comprovado das origens, causas e alvos preferenciais do COVID-19. Vecina Neto ressaltou que grande parte do que se sabe, até agora, é apenas pela observação, faltando estudos conclusivos e claros.

A afirmação de que, por exemplo, crianças menos de 12 anos teriam quase nenhum risco de contrair a doença deve ser vista com muita cautela, prosseguiu o analista.

“Ninguém sabe isso. O que sabemos é o que temos visto, que as crianças foram poupadas até agora de quadros graves. Nós sabemos isso visto o que estamos acompanhando, não por um conhecimento que já existia, mas sim porque estamos observando e ele pode mudar. Vamos continuar observando para ver se de fato é verdade que crianças de até 12 anos podem pegar [o coronavírus] e não faz mal, enquanto pessoas de maior idade são as grandes candidatas a irem para tratamento intensivo e a maioria dos mortos está na faixa acima dos 70, 75 anos”, concluiu.
O médico aproveitou para relembrar que o novo coronavírus tem os mesmos sintomas clássicos de uma gripe comum, com a insuficiência respiratória (dificuldade de respirar) como a sua principal diferença. E estes casos são os que mais preocupam as autoridades.

Sputnik