Líderes mundiais adotam discurso de guerra contra vírus
Foto: Joshua Roberts/Reuters
Retórica militar, patriotismo exacerbado e a lembrança de glórias passadas. Na crise da Covid-19, diversos líderes mundiais têm buscado em entrevistas e pronunciamentos seu momento Winston Churchill.
O primeiro-ministro britânico da Segunda Guerra Mundial tornou-se icônico ao levantar o moral de um povo assustado com o avanço nazista, prometendo nunca se render.
Embora a oratória churchilliana seja insuperável, chefes de Estado e governo têm recorrido a frases e gestos grandiosos para demonstrar a gravidade do momento e pedir a união nacional.
Mesmo com o uso frequente das redes sociais, a TV segue sendo um veículo incontornável, com frequentes cadeias nacionais e coletivas.
Referências a guerra são comuns. Em pronunciamento à nação francesa em 16 de março, o presidente Emmanuel Macron usou sete vezes a expressão “estamos em guerra” em 21 minutos.
“Não lutamos contra um Exército ou contra outra nação. Mas o inimigo está lá, invisível, imperceptível, progredindo. E isso requer nossa mobilização geral”, disse, sentado em seu gabinete no Palácio do Eliseu.
Foi a segunda fala em quatro dias de Macron, sua forma preferida de se comunicar com os franceses. Os primeiros acordes da Marselhesa no início da transmissão ajudaram a compor o clima solene.
Na Alemanha, a chanceler Angela Merkel adotou o mesmo modelo, no dia 18.
Com a abóbada transparente do Reichstag (o Parlamento) ao fundo, sentada e com ar sóbrio, comparou o momento à luta contra o nazismo.
“Desde a reunificação, não, desde a Segunda Guerra Mundial, não houve outro desafio para nosso país que dependa tanto de nossa ação solidária e comum”, disse.
Os dois líderes europeus optaram por discursos caudalosos. Macron usou 2.621 palavras, e Merkel, 1.746.
Em comparação, os dois pronunciamentos na TV do presidente Jair Bolsonaro sobre o vírus foram raquíticos e frios: 203 palavras em 6 de março, quando chamou a doença de “grande desafio” e 221 no de 12 de março, quando falou apenas em preocupação. Em ambos, pediu para não haver pânico.
Um pronunciamento também foi o modo escolhido pelo primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte para falar à nação em 4 de março, momento em que as mortes disparavam.
“Somos um país forte, um país que não se rende. É o nosso DNA”, disse.
Curiosamente, no país do Império Romano e do Renascimento, Conte buscou num evento relativamente recente um exemplo da fibra italiana.
“Vamos aplicar o modelo da Ponte Morandi, que nos ensina que quando nosso país é golpeado, sabe se levantar, formar um time e tornar-se mais forte”.
A referência é a uma construção em Gênova que desabou em 2018, causando a morte de 43 pessoas. Passado o choque da tragédia, houve um grande movimento nacional de solidariedade às famílias dos mortos e incentivos econômicos do governo para a reconstrução da ponte e da região onde ela ficava.
Expoentes da direita populista, Donald Trump (EUA) e Boris Johnson (Reino Unido) têm preferido o formato de entrevistas coletivas quase diárias, sempre ladeados por cientistas (mas que quase não abrem a boca).
Trump também investe pesado na metáfora bélica, e chegou a se declarar um “presidente em tempo de guerra” no dia 18 de março. Também não resistiu a uma referência à Segunda Guerra.
“Cada geração de americanos é chamado a fazer sacrifícios pelo bem da nação. Na Segunda Guerra, adolescentes e jovens se voluntariaram para lutar”, declarou.
Trump, contudo, tem tido momentos menos solenes, como fustigar a China chamando a Covid-19 de “vírus chinês” e bater boca com repórteres.
Já Johnson tem repetido os eloquentes movimentos com braços e as súbitas alterações no tom de voz ao falar à nação, duas marcas registradas.
Para ele, a Covid-19 é um “inimigo invisível”, como classificou numa entrevista coletiva.
“Precisamos remover esse manto da invisibilidade [fazendo o gesto de uma capa sendo retirada] e identificar quem de nós o está carregando [esticando o braço e apontando para os jornalistas à sua frente]”.
Ninguém foi mais explícito no uso da simbologia militar, no entanto, que o chinês Xi Jinping, numa visita a Wuhan, epicentro da pandemia, em 20 de março.
Cercado por militares de farda, ele disse a profissionais da área de saúde por videoconferência que “podemos vencer essa guerra”. Em resposta, de máscaras e roupas protetoras, eles bateram continência para o líder chinês.
Para a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, momentos de crise sempre trazem a figura do “grande líder” que fala para a nação.
“O chefe de Estado ou governo pode aparecer como o salvador nesse momento, a face da massa. A crise abre uma fresta de oportunidade para eles”, afirma.
Da mesma forma, é a hora em que o nacionalismo aflora, assim como o peso da história.
“O momento é favorável para esses nacionalismos exacerbados, e até medidas de exceção em alguns casos”, diz.
No Japão, o primeiro-ministro Shinzo Abe aproveitou o relativo sucesso no controle da doença para estocar dois adversários históricos, a China e a Coreia do Sul.
Em entrevista coletiva em 14 de março, lembrou que o número e infectados no país é menor do que nos dois vizinhos. Abe tem preferido se comunicar por meio de notas oficiais, após reuniões técnicas sobre o tema. Já são 22 desde o final de janeiro.
No mundo emergente, a retórica da guerra se repete, a começar por nossa vizinhança mais imediata, a Argentina.
“É uma luta contra um Exército invisível e que além disso era desconhecido. Uma luta muito desigual, porque não sabemos onde está o inimigo”, disse o presidente Alberto Fernández em entrevista coletiva em 16 de março.
Na África do Sul, o presidente Cyril Ramaphosa falou à nação em 15 de março pela TV e agarrou-se num evento histórico glorioso do país, a luta contra o apartheid. Terminou citando “We Shall Overcome” (vamos superar), hino da luta contra a segregação racial.
O vírus também levou o líder supremo do Irã, Ali Khamenei, a fazer um raro pronunciamento.
Em 1min53s, ele basicamente agradeceu aos profissionais de saúde do país, um dos mais atingidos pela pandemia, e evitou pronunciar coronavírus ou covid-19. Referiu-se apenas a “doença recente” e “vírus malicioso”.