Mortes por vírus são maiores que o anunciado pelo governo
Foto: Getty Images
Gabriel Martinez tinha 26 anos. Músico e publicitário, ele morava no Rio de Janeiro (RJ). Segundo a família, não tinha problemas de saúde. No último sábado (21), morreu em um hospital particular.
Na certidão de óbito, consta que ele teve sepse pulmonar — uma infecção no pulmão. Os sintomas e a surpresa com a morte do jovem levaram a família e médicos a desconfiarem da causa: uma possível infecção pelo novo coronavírus.
Uma semana depois da morte do músico, os testes feitos com base nos materiais colhidos dele ainda não ficaram prontos.
O caso de Gabriel não é único. Em hospitais e nas redes sociais, histórias de possíveis vítimas sem diagnóstico oficial pela escassez e a demora nos resultados dos testes põem em xeque as estatísticas de mortos pelo coronavírus no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, casos suspeitos não são contabilizados até que sejam confirmados por exames — que têm demorado mais de uma semana.
Sem respostas, a engenheira Maria Aparecida Martinez não fez o velório do filho. Antes da morte do rapaz, ela mal teve tempo para se despedir dele no hospital. “Olhei para o meu filho por dois minutos pela última vez, porque implorei para a médica. Não queriam me deixar aproximar dele por causa da suspeita do vírus”, diz à BBC News Brasil.
Ela relata que a incerteza sobre a causa da morte do filho tornou a perda ainda mais difícil. “É muito descaso e despreparo. Acredito que o meu filho realmente tenha morrido por causa do coronavírus. Mas é muito difícil para a família não ter essa confirmação”, afirma à BBC News Brasil.
A coordenadora de operações Fernanda*, de 39 anos, viveu situação semelhante. A mãe dela morreu no último dia 16, também com suspeita de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. Por dez dias, ela ficou à espera do resultado do exame. “Essa incerteza foi muito ruim”, desabafa.
“Muitas contaminações ocorreram e ocorrerão por falta dessas informações”, declara Fernanda, que perdeu a mãe. Ela acredita que muitas pessoas próximas a um paciente morto por suspeita do novo vírus podem ignorar o isolamento por não terem o resultado do exame.
A certidão de óbito da mãe de Fernanda cita que a idosa, de 63 anos, teve problemas respiratórios e chega a mencionar a suspeita de covid-19. Mas a confirmação só veio mais de dez dias após o exame.
O Ministério da Saúde não divulga dados sobre óbitos suspeitos de terem sido causados pelo novo coronavírus, apenas os confirmados. Desta forma, os números reais podem ser muito maiores do que os oficiais.
Há 2,9 mil registros de pessoas infectadas no país e 77 mortes, segundo a pasta, até quinta-feira (26) — os números oficiais, segundo especialistas, são menores do que a realidade, em razão do baixo número de testes disponíveis.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) orienta que os países façam testes em massa em casos suspeitos, para controlar a pandemia do Sars-Cov-2, como o vírus é chamado oficialmente. No Brasil, porém, os resultados demoram até duas semanas e muitos pacientes não são testados em razão da falta de exames.
Desde que começaram os registros de casos de transmissão comunitária — quando não é possível identificar a origem do vírus — no Brasil, há duas semanas, o Ministério da Saúde passou a orientar que sejam testados somente os pacientes graves ou profissionais de saúde que estão na linha de frente dos casos.
A pasta afirma que os testes serão ampliados em breve, pois adquiriu 22,9 milhões que serão distribuídos em todo o país.
Maria Aparecida relata que o filho passou a se sentir mal seis dias antes de morrer. Era um domingo quando ele começou a ter febre. “Fizemos como os meios de comunicação e os médicos dizem. Mantivemos o controle dele em casa, cuidando como se fosse uma gripe”, diz.
Ela conta que, desde os primeiros sintomas do filho, tentou procurar um local no qual ele pudesse fazer exames, no Rio de Janeiro. “Liguei insistentemente para todos os laboratórios. Queria pagar pelo exame particular, mas sequer me atendiam. Em nenhum lugar era possível fazer esses exames”, diz a engenheira.
Os sintomas do jovem pioraram e a febre não cessou. Três dias depois do início do mal-estar, os pais levaram Gabriel para uma unidade de saúde particular na capital carioca.
“Ele foi medicado, saiu com antibióticos e disseram que se ele não melhorasse, deveria ir novamente ao hospital. Os médicos deram também um pedido de exame para o coronavírus, mas não tínhamos onde fazer, porque nenhum laboratório nos atendia”, relata Aparecida.
No último sábado (21), Gabriel disse aos pais que não tinha forças para levantar da cama. Foi encaminhado ao hospital. Uma tomografia apontou que mais de 50% dos pulmões dele estavam comprometidos — condição que costuma acontecer em casos de covid-19.
“O meu filho era totalmente saudável. Nunca teve problemas respiratórios. Ele não era fumante, não tinha asma, diabetes, bronquite ou qualquer problema de saúde”, diz Aparecida.
“De repente, ele teve esses problemas nos pulmões e os médicos disseram que poderia ser coronavírus. Não tá comprovado ainda, por falta do exame, mas não tenho dúvida de que era isso mesmo”, diz a mãe do jovem.
Desde que retornou ao hospital, os médicos passaram a acompanhar Gabriel como se fosse um paciente com o novo coronavírus, por ser considerado um caso altamente suspeito. O protocolo para acompanhar pessoas com a covid-19 inclui o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e isolamento.
Horas após dar entrada no hospital, Gabriel foi entubado e teve a primeira parada cardíaca. Só então, segundo a mãe, fizeram o teste de coronavírus nele.
“O médico me disse sobre a orientação do Ministério da Saúde, de que os testes devem ser feitos somente em pessoas em estado grave. Quando a pessoa chega ao estado terminal, aí eles se preocupam em fazer o teste, para depois virar estatística”, diz Aparecida.
O médico disse à engenheira que o exame demoraria cerca de sete dias para ficar pronto, mesmo se tratando de um caso grave. Horas depois, Gabriel morreu. “Nem sei quando esse exame vai ficar pronto”, lamenta a mãe do rapaz.
Os pais seguiram as orientações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para casos de mortes por coronavírus e cremaram o filho — a medida é a mais recomendada, porém não é considerada pela entidade como obrigatória, pois os parentes também podem optar por enterro com caixão lacrado. A recomendação é a mesma para casos suspeitos ou confirmados.
A Anvisa recomenda que a cerimônia de despedida de um paciente com coronavírus deva reunir o menor número possível de pessoas, preferencialmente apenas os familiares mais próximos, para reduzir a possibilidade de contágio. Os participantes do funeral devem evitar apertos de mãos ou outros tipos de contatos e precisam seguir orientações de higiene — como o uso de álcool em gel e lavar as mãos com água e sabão com frequência.
Mesmo sem saber se o filho estava com o novo coronavírus, os pais não fizeram nenhuma cerimônia de despedida para o jovem. “Eu e o meu marido liberamos o corpo dele no hospital. O caixão estava lacrado. Depois, o corpo foi levado para o crematório, onde pegamos as cinzas dele”, relata Aparecida. Os amigos de Gabriel não conseguiram se despedir do jovem.
Na quarta-feira (25), os pais dele colocaram a urna com as cinzas do jovem em um cemitério da capital carioca. Ali, parentes e amigos poderão prestar homenagens ao rapaz. “Estamos em uma situação em que só podemos receber abraços virtuais ou ligações. Está sendo muito difícil não poder abraçar de verdade.”
Agora, Aparecida convive com a saudade e a incerteza. “Dói muito olhar pra cama dele e ver que ele não vai estar lá, ou não ouvir mais o barulho da chave dele abrindo a porta de casa. Está sendo muito difícil.”
Sem respostas sobre o exame do filho, ela, o marido, o outro filho e a nora estão em isolamento. “Não estamos saindo de casa, à espera por respostas”, comenta.
“Estou indignada com o modo com que as autoridades estão tratando o coronavírus, achando que é um ‘resfriadinho'”, completa.
A espera de Fernanda por respostas durou mais de 10 dias. A mãe dela, a aposentada Júlia*, se dividia entre os cuidados com a casa e com a neta e trabalhos voluntários, como em um centro espírita em São Paulo (SP). A idosa tinha diabetes, colesterol alto e hipertensão. “Mas era tudo controlado. Ela fazia atividades físicas uma vez por semana”, relata.
Os sintomas da covid-19 começaram em quatro de março, quando Júlia teve dores no corpo e na garganta. No dia seguinte, foi ao pronto-socorro de uma unidade da operadora Prevent Senior, especializada em planos de saúde para idosos.
“Entre o dia cinco e 13 de março, a levamos quatro vezes ao pronto-socorro. Os três primeiros médicos pediram apenas exames de sangue e raio-X do pulmão dela e negaram que ela tivesse sintomas de covid-19. Somente o último pediu uma tomografia do tórax e exames para a covid-19 e H1N1. Nessa noite, constataram comprometimento da função pulmonar”, relata Fernanda.
“Parecia que os primeiros médicos não estavam preparados ou não estavam esperando a pandemia chegar. Pareciam não saber qualquer protocolo específico para a suspeita da doença”, acrescenta.
No dia 13, a idosa foi internada; em dois dias foi entubada porque a função pulmonar piorou. Ao todo, segundo a filha, Júlia passou quatro dias internada e morreu. O resultado do exame feito em 12 de março saiu somente na quinta-feira (26): positivo para covid-19.
Fernanda critica o fato de que, mesmo sendo um caso grave, que posteriormente se tornou um óbito, o exame da sua mãe não se tornou prioridade.
A idosa foi cremada. “Não houve nenhuma orientação por parte do hospital sobre como deveríamos proceder, mas achamos mais prudente cremar, para evitar algum tipo de contaminação. Comunicamos aos parentes e amigos que não haveria velório, por conta da suspeita de coronavírus”, diz a filha.
Mesmo sem respostas do exame, desde que Júlia foi internada os parentes mais próximos passaram a ficar em isolamento. “Não tivemos sintomas. Já tivemos tosse, mas já passou”, diz. Ela, o marido e a filha de quatro anos permanecem em casa, em uma propriedade no mesmo terreno em que a idosa morava.
A confirmação do exame para o coronavírus foi uma forma de Fernanda encerrar a angústia da espera por respostas sobre a morte da mãe. “Ainda não processei o resultado. É muito recente e muito complexo. Mas, por fim, houve um desfecho e poderei viver meu luto”, diz à BBC News Brasil, pouco após receber o resultado.
Procurada pela reportagem, a operadora de saúde Prevent Senior não comentou o caso.
A demora para os resultados de pacientes em estado grave ou mortos ilustra as dificuldades do enfrentamento ao coronavírus no Brasil.
A OMS recomenda testes em massa para casos suspeitos, mesmo aqueles que não sejam graves, justamente para “achatar a curva” de transmissão — ou seja, evitar que milhares de pessoas fiquem doentes ao mesmo tempo, evitando assim uma sobrecarga ainda maior no sistema de saúde. A medida foi adotada por países como Coreia do Sul e Alemanha, que se tornaram bons exemplos no combate à pandemia.
No Brasil, a realidade até então é diferente do recomendado pela organização mundial. Os exames não costumam sair antes de sete dias — exceto em hospitais particulares com laboratórios próprios que seguem as orientações do Ministério da Saúde.
“Era fundamental, desde o princípio, seguir a orientação da OMS e testar todos os casos suspeitos. Muitos pacientes são assintomáticos e podem transmitir para pessoas que estão em grupos de risco (idosos, diabéticos, cardiopatas ou pessoas com outras comorbidades)”, afirma o médico Jaques Sztajnbok, supervisor da UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.
Sztajnbok acompanhou duas mortes por suspeita de coronavírus na UTI do Emílio Ribas. Mais de sete dias depois, ainda não obteve respostas dos exames. “Esse resultado é fundamental até mesmo para a equipe médica que atendeu o paciente. Os trabalhadores que acompanharam essa pessoa que pode estar com coronavírus podem ter gripe ou febre e se souberem que foi um caso de covid-19, logo vão se afastar. Ter esses testes com rapidez é muito importante”, declara.
A médica sanitarista Ana Freitas Ribeiro, do serviço de epidemiologia do Emílio Ribas, também critica a demora nos resultados de exames de pacientes mortos com suspeita de covid-19. “O Brasil já restringiu os testes atuais aos pacientes mais graves, que correspondem a cerca de 20% dos casos. Então, não tem nenhum sentido haver atraso para os resultados desses pacientes”, declara.
“É importante que esses pacientes (que morreram com suspeita de coronavírus) tenham os resultados o quanto antes, até mesmo para que os familiares, caso o teste dê positivo, possam se isolar e a equipe médica esteja atenta, caso tenha sido exposta a alguma situação”, pontua a especialista.
O Ministério da Saúde diz, em nota, que, em caso de morte por suspeita de coronavírus, orienta que os trâmites para a emissão do atestado de óbito sejam os mais ágeis possíveis e recomenda que o velório aconteça “de forma mais célere possível, evitando concentração de pessoas”.
Em relação aos familiares desses pacientes, a pasta afirma que pede “que adotem as recomendações de proteção necessárias para garantia da sua segurança”.
A pasta, porém, não tem uma orientação para que exames de pacientes mortos por suspeita de coronavírus sejam considerados prioridades. “A recomendação (sobre o assunto) será apresentada na coletiva nos próximos dias. Peço que aguarde”, diz a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde à reportagem da BBC News Brasil.
Nesta semana, o Ministério da Saúde afirmou que aumentará o alcance dos testes. Para isso, o Brasil irá adquirir 14,9 milhões de testes RT-PCR, que detectam a presença do vírus na amostra e, por isso, são considerados mais precisos, e 8 milhões de testes rápidos, que detectam a presença de anticorpos que o corpo produz contra o vírus — e, portanto, só acusam se alguém está doente alguns dias após a infecção, quando o organismo começa a reagir.
Segundo o Ministério da Saúde, os testes rápidos serão destinados aos profissionais da saúde. Os do tipo RT-PCR serão usados nos casos mais graves. Parte deles deve começar a ser distribuída na próxima semana.
A médica Ana Freitas defende que o tempo ideal para os resultados é de 48 horas após a coleta do material do paciente. “Ter os resultados o quanto antes é uma medida ampla de saúde para a redução de casos”, pontua.
Para Sztajnbok, o aumento nos números de testes é medida urgente. Ele afirma que muitas mortes por coronavírus podem ter sido registradas de outras formas, por falta de exames.
“Se apenas na UTI que coordeno há dois óbitos sem respostas até o momento, então deve haver muitas mortes por pneumonia, insuficiência respiratória ou mal súbito que podem ter relação com a covid, mas não há resultados dos exames. Deve haver uma centena de casos assim”, declara.