Ameaça de golpe uniu contrários no Brasil

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Foto: Edu Andrade / Fatopress / Folhapress

No final de 2019, o deputado Eduardo Bolsonaro disse calmamente em uma entrevista que, se a “esquerda” no Brasil “se radicalizasse”, o governo poderia propor um plebiscito para aprovar um “novo AI-5”, instrumento da ditadura para reprimir com prisões, tortura ou morte qualquer atividade opositora. A fala chocou, mas foi tomada com descrédito em razão do absurdo que representava — e o zero três não foi punido pelo que disse. Pouco mais de sete meses depois, o país assiste a seu presidente da República alardear a fantasia de usar as Forças Armadas para avançar sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) e observa seus aliados sugerirem uma interpretação lunática do artigo 142 da Constituição para forjar uma intervenção militar. Tal agravamento da crise institucional fez lideranças políticas que caminhavam isoladas se unir em abaixo-assinados e grupos de WhatsApp em busca de um denominador comum para defender a democracia de um presidente mal-intencionado. Mas interesses eleitorais e desavenças políticas não parecem deixar que uma barreira de contenção se consolide para conter uma escalada autoritária do governo.

Quando Eduardo Bolsonaro mencionou o AI-5, a historiadora Heloisa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de imediato se preocupou. Em dezembro, ela publicou em ÉPOCA um artigo em que relembrava a Frente Ampla, criada em 1966 — uma união até então impensável de adversários políticos temerosos da ditadura que se instalava no Brasil. “Entre os meses de outubro de 1966 e abril de 1968, os três personagens que se abominavam decidiram conversar, encontraram uma linguagem comum e acertaram uma aliança — batizada ‘Frente Ampla’. Jango era uma das principais lideranças do campo das esquerdas; JK estava ‘à esquerda da direita e à direita da esquerda’, como se autoproclamavam seus correligionários, ao centro do espectro político; e Carlos Lacerda capitaneava a fina flor do conservadorismo no país”, escreveu. Os opostos se uniram em defesa de uma pauta comum: a restauração do poder civil, o pluripartidarismo, o direito de greve, a Constituinte e as eleições diretas.

Algo semelhante parece estar em curso no Brasil hoje — sobretudo depois que as forças políticas se convenceram de que os militares da reserva não estariam tão curados assim do ímpeto totalitário de 1964, vide a carta enviada pelo general Augusto Heleno para ameaçar o STF. Seja em prol do impeachment de Bolsonaro ou da mera defesa da democracia, alguns partidos têm conversado, mas sem chegar a um lugar concreto. No campo político de centro-esquerda, a resistência a Bolsonaro uniu PSB, PDT, Rede, PV e Cidadania, criadores do movimento Janelas pela Democracia, que defende o impeachment e pretende realizar eventos virtuais para angariar apoio. A ação partidária, no entanto, ainda está restrita a uma ala da esquerda que já se relaciona entre si — ou seja, não “fura a bolha”. “Desde o início do governo, tive muito claro para mim que era preciso unir as forças mais heterogêneas possíveis na defesa contra o autoritarismo. E não podemos misturar esta frente contra o arbítrio com frente eleitoral”, disse o presidente do PSB, Carlos Siqueira, um dos signatários da carta.

O recado de Siqueira sobre a diferença entre a defesa de princípios e uma eventual aliança nas urnas, diante das eleições de 2020 e 2022, tem destinatário claro: o ex-presidente Lula, que minimizou a força de uma articulação ampla contra Bolsonaro. O petista defendeu que os manifestos em conjunto não contemplam uma pauta de interesse da classe trabalhadora e sugeriu que o PT pode navegar sozinho. A declaração causou mal-estar entre apoiadores. Isso porque o candidato à Presidência pelo partido em 2018, Fernando Haddad, é signatário de um dos manifestos. Lula também afirmou não encontrar mais espaço para a união com siglas que tenham defendido ideias como o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff ou reformas do governo Temer. Ocorre que, mais do que mostrar o ressentimento com o passado, o ex-presidente fez um movimento político: esquiva-se de associar sua imagem a um novo impeachment e não cria amarras partidárias para o futuro. Para Siqueira, o posicionamento de Lula decepciona. “É uma falta de compreensão sobre as necessidades de um momento duro e sem precedentes na história brasileira”, afirmou.

O PT não tem uma posição definida, e as declarações de Lula não parecem ajudar a que se alcance um consenso. Diante do isolamento do partido, os ex-presidenciáveis Ciro Gomes e Marina Silva chegaram a afirmar que a frente ampla deveria ser antibolsonarista e antipetista. “Eu não gosto do Bolsonaro, mas também não quero o PT de volta”, argumentou Ciro, no final de maio. Apesar das críticas, há petistas que apoiam as alianças mesmo assim. É o caso do senador Jaques Wagner, que aventara, em vão, a criação de um movimento parecido para as eleições de 2018. Líder da minoria no Congresso, José Guimarães (PT-CE) também disse não concordar com Lula. “Isso não significa concordância com programa que a direita liberal quer para o país pós-pandemia. Na luta contra o fascismo e em defesa das instituições, estamos juntos. Em relação às saídas para a crise, estamos separados”, sintetizou.

“NA CENTRO-DIREITA, OS MOVIMENTOS ANTIBOLSONARISTAS SÃO MENOS CONTUNDENTES. POLÍTICOS HESITAM EM ASSINAR MANIFESTOS E EM FALAR ABERTAMENTE SOBRE O IMPEACHMENT”

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Entre os partidos alinhados à centro-direita, as movimentações são menos contundentes, ainda que alguns políticos tenham sido signatários dos manifestos recentemente produzidos. O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) chegou até mesmo a protocolar um pedido de impeachment contra Bolsonaro, em nome do Movimento Brasil Livre (MBL), embora essa não seja a posição prevalente dentro de seu partido, em especial porque o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), uma de suas principais lideranças, é justamente um dos alvos mais frequentes dos ataques às instituições. Um revide formal da sigla poderia ser, portanto, entendido como uma declaração de guerra ao governo. Já no PSDB, a posição predominante do grupo de João Doria, por enquanto, é que Bolsonaro seria mais útil sangrando durante todo o mandato do que sacado do poder pelo impeachment ou até mesmo pela cassação de sua chapa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O partido apoia manifestos em prol da democracia, mas não em favor do impeachment — pelo menos, não agora. Está de olho em 2022, como Lula.

Ainda no campo da direita, a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que vem defendendo a saída de Bolsonaro do governo, também se negou a assinar qualquer manifesto por avaliar que as razões defendidas por alguns organizadores para embasar o impeachment, ligadas ao inquérito das fake news, são questionáveis. “Intriga-me ver tantos juristas, que questionaram a legitimidade do processo do mensalão, da Lava Jato e do impeachment, agora, assinarem manifestos, sem fazer referência ao inquérito sigiloso no STF! Não estão achando estranha essa investigação!?”, questionou a deputada em sua conta no Twitter.

No campo de combate a Bolsonaro, há ainda o latifúndio que caberia a Sergio Moro. Alguns representantes da esquerda eternamente críticos ao ex-juiz dizem hoje não ver problema em dividir com ele o mesmo lado da mesa de debates. “Se ele se arrependeu de ter feito parte e ajudado a eleger um governo fascista e quer assinar um manifesto pedindo democracia contra Bolsonaro, eu jamais vou vetar o nome dele. Daí a eu ficar amigo dele há uma distância muito grande”, declarou o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ). Alessandro Molon (PSB-RJ), outro crítico do ex-ministro, também se disse a favor: “Cabem todos contra a ditadura que o Bolsonaro quer implantar no Brasil”. Tal disposição, contudo, ainda causa divergências. Petistas se negam a jogar do mesmo lado que o ex-juiz, ainda ressentidos com a Operação Lava Jato, e o jornalista Juca Kfouri, um dos organizadores do movimento Estamos Juntos, afirmou à Folha de S.Paulo que Moro estaria vetado do abaixo-assinado. “Entrarão todos, menos os fascistas. Moro, fora. É o limite”, declarou.

Se uma frente organizada ainda parece estar longe no horizonte, o momento ao menos tem servido para aprofundar diálogos que antes eram menos frequentes. O deputado Freixo atribuiu aos esforços necessários para a criação da “frente ampla”no Congresso sua desistência em disputar a prefeitura do Rio de Janeiro. A decisão deu origem a novas frentes de diálogo. “Isso suscitou uma quantidade gigantesca de reuniões”, contou ele, que depois de desistir foi chamado para conversar com integrantes do grupo de articulação política de Luciano Huck. “Sempre dialoguei muito. Desde o Paulo Hartung, Arminio Fraga… dentro do parlamento, vários grupos diferentes. Mas não é um debate de candidatura, é um debate sobre democracia”, disse.

O deputado afirmou que também foi procurado pela ex-jogadora de vôlei Isabel, que quer lançar um manifesto de esportistas pela democracia. “É preciso criar fissuras do lado de lá. Eles precisam ser derrotados. Então eu vou conversar com todos para que a gente possa estar junto”, disse Freixo. Nesse esforço por união, até mesmo grupos de diálogo antes impensáveis foram criados no WhatsApp, como o Frente anti-Bolsonaro, que tem como um dos administradores o deputado Kim Kataguiri. Fazem parte da turma Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-aliada de Bolsonaro, Tabata Amaral (PDT-SP), Molon e Freixo.

“A POSSÍVEL ADESÃO DE SERGIO MORO AOS MANIFESTOS PRÓ-DEMOCRACIA TEM CAUSADO DIVERGÊNCIAS NA ESQUERDA. HÁ OS QUE SÃO A FAVOR, COMO MARCELO FREIXO (PSOL) E ALESSANDRO MOLON (PSB), E OS CONTRÁRIOS, COMO O PT”

Um vídeo que usa indevidamente imagens da cartunista Laerte para defender a manutenção de Bolsonaro na Presidência com restrições ao poder de outras instituições foi o gatilho para que advogados criminalistas paulistanos lançassem o manifesto do Basta!, movimento de profissionais do Direito que elevou o tom da crítica ao governo e defendeu “a intolerância contra os intolerantes”. Em um dia, o texto ganhou a adesão de 700 advogados, procuradores e juízes, de advogados iniciantes a quatro ex-ministros do STF. “A alta adesão mostra que havia uma demanda reprimida na sociedade para dizer que chegamos ao limite. E não se trata de chamado à violência, mas expressão do direito de agirmos dentro da lei para acabar com esse tipo de manifestação contra as instituições. Isso não é liberdade de expressão, mas ataque ao estado de direito”, afirmou o advogado Igor Tamasauskas, um dos autores do manifesto inicial.

O manifesto dos juristas, de certa forma, tem ocupado o espaço ainda vago da direita na organização de ações contra Bolsonaro. Para o advogado Antonio Mariz, que também aderiu ao movimento Basta!, a meta é mobilizar a sociedade. “Temos de sair da inércia. A inércia é quase uma colaboração com o statu quo”, disse o advogado, que vem incentivando lideranças de outros segmentos da sociedade a também se manifestarem publicamente. A principal estratégia do grupo é a vigilância, ou seja, estar preparado para brigar nos tribunais caso o caldo democrático desande de vez. Recentemente, representantes de três movimentos criados nas últimas semanas — Basta!, Estamos Juntos e Somos 70 por Cento — se reuniram para trocar impressões. Perceberam-se em posições alinhadas. Mas, por causa dos riscos de contágio decorrentes do novo coronavírus, há temor em incentivar manifestações de rua.

Ao analisar a formação dos movimentos atuais, Heloisa Starling, hoje também signatária de um dos manifestos pela democracia, relembra a origem de outra frente ampla, que se formou pelas Diretas, a partir do culto ecumênico celebrado por ocasião do assassinato de Vladimir Herzog, em 1975. O grupo uniu o movimento estudantil, a Igreja, empresários, artistas, professores, operários e movimentos de minorias políticas. “O núcleo aglutinador não era composto de partidos políticos nem eventuais eleições. Era a exigência de retorno ao estado de direito e a reivindicação dos direitos de cidadania”, disse.

Para a historiadora, a organização da sociedade nos movimentos pró-democracia tende a inibir reações totalitárias do lado do bolsonarismo, por derrubar a ideia do “inimigo comum”, personificado em um político ou em uma ideologia. “Talvez essa frente consiga se fortalecer suficientemente para termos nas próximas eleições candidatos da democracia, e não apenas dos partidos. Todas as vezes em que a sociedade conseguiu se organizar em defesa dos valores que ela preza, foi difícil para o autoritarismo se impor, a não ser à custa de um banho de sangue, o que não parece ser algo em nosso horizonte”, afirmou.

A primeira Frente Ampla naufragou porque foi soterrada pela força do AI-5, que perseguiu todas as lideranças que apoiavam o movimento. Mas também porque ela pode ter levado tempo demais para ser construída — em 1966, os militares já estavam havia dois anos no poder, bastante ambientados, confortáveis e sem nenhuma intenção de sair. No início dos anos 1980, a nova tentativa se deu com a frente das Diretas Já. A pressão popular por eleições diretas causou enorme ruído, mas a caserna só aceitou sair em 1985 mediante o voto indireto, com Tancredo Neves, que, ao morrer, foi substituído por José Sarney. Outro fracasso, ainda que parcial.

Em 2020, além das desavenças políticas e dos interesses partidários que dificultam uma união, o tempo também pode voltar a ser o inimigo, como em 1966. As ameaças do passado eram bastante claras: os militares estavam no poder e não havia democracia. Mas hoje não se sabe quando, nem como, nem o que Bolsonaro poderá fazer num próximo arroubo autoritário. Essa incerteza faz com que o senso de urgência por ação não seja o mesmo para todos que estão dispostos a defender a democracia. O que pode dar origem a uma frente bem-intencionada, mas cheia de buracos e passível de um novo naufrágio.

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