Combate ao bolsonarismo une gerações e ideologias

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Foto: Rogério Galasse/Futura Press/Estadão Conteúdo

Grupos que surgiram nos últimos dias com manifestos em defesa da democracia e críticas ao presidente Jair Bolsonaro reúnem jovens que nunca participaram de manifestações, ex-eleitores do mandatário, pessoas que não seguem partidos políticos e veteranos que já foram para as ruas pedir eleição direta e impeachment de presidentes. Enquanto alguns devem protestar contra Bolsonaro hoje, outros discutem se esta é a melhor hora para sair de casa.

O Estadão reuniu relatos que representam este encontro de gerações e de bandeiras nos novos movimentos da política nacional. Entre os novatos nas manifestações está o estudante de gestão empresarial Leonardo Argollo, de 22 anos, que se juntou ao Somos Muitos, cujo manifesto online recebeu mais de 280 mil assinaturas desde o dia 30. Para o jovem, os atos contra Bolsonaro deixarão o legado da união para o futuro do País.

Há também histórias de veteranos, como a advogada Margarida Pressburger, de 76 anos, signatária do Basta! e do Juntos e que participou de marchas pelas Diretas Já. Militante dos Direitos Humanos desde a década de 1960, ela espera dar exemplo aos jovens com o ensinamento de que protesto “se faz na rua”.

“Temos tido um histórico de muita presença nas ruas desde as Diretas Já. Nossa democracia é instável”, diz o cientista político Kleber Carrilho, da Universidade de São Paulo. “O que leva as pessoas às ruas é a percepção de que alguma liberdade está sendo tolhida. Isso se une à crise econômica, que impacta interesses individuais das pessoas, e à articulação de grupos organizados, como sindicatos, movimentos, partidos e agora até torcidas organizadas de clubes de futebol.

“Nos ‘tsunamis’ da educação de 2019, podíamos incentivar as pessoas a irem para a rua, então, tinha mais gente participando. Porém, as manifestações de hoje são mais amplas, com participação de direita e esquerda, torcidas rivais, pessoas com opiniões diversas. Estamos na rua pelo direito de divergir.

O que está em jogo hoje é o Estado Democrático de Direito. Não podemos ficar parados enquanto vemos bandeiras neonazistas serem erguidas por manifestantes pró-governo nas ruas.

Claro que existe uma tensão maior no ar. Ninguém quer se expor ao risco de trazer a covid-19 pra dentro de casa. Por isso, precisamos tomar cuidado, todo mundo que for para a rua deve estar usando máscaras e luvas, evitar o contato direto e a proximidade, mas, mesmo com tudo isso, o clima é de união, de frente ampla.

Espero que esse momento nos ensine uma lição para o futuro. Precisamos pensar em conjunto para construir um país melhor e mais democrático.

A polarização é ruim para o povo, precisamos passar mais tempo nos concentrando em como resolver os problemas do desemprego e da fome do que brigando por teorias da conspiração.”

“Nunca me envolvi em política, porque sempre tive uma visão bem crítica do antigo governo do PT. A minha única participação foi nas manifestações de 2013, pelo aumento das tarifas, e agora, na Avenida Paulista, a favor da democracia.

Até onde lembro, não via movimentos de democracia. Via brigas políticas de esquerda e direita. E eu não sou partidário. Para mim, não existe isso de esquerda ou direita. Política é um jogo de interesse.

Conheci o movimento a favor da democracia em conversas com amigos da Gaviões da Fiel. No movimento a gente não está levantando bandeira nenhuma. Minha participação é em função de episódios recentes, como as agressões a enfermeiros em Brasília e as manifestações em que levantaram a faixa da ditadura. Minha crítica é a quem apoia a ditadura. E coincidentemente são eleitores do Bolsonaro.

Votei no Bolsonaro no segundo turno, mas indo contra o PT. No primeiro eu anulei, depois segui o critério de “menos pior”. Acho que ele tem a obrigação de enfatizar que não haverá intervenção, porque é sempre em manifestações a favor do seu governo que essas bandeiras são levantadas. Ele nega, sim, mas nega muito pouco.

Eu, sinceramente, espero uma mudança de postura do presidente. E que as pessoas passem a aceitar mais a opinião do outro.

O nosso ato está se consolidando cada vez mais. Conseguimos levar quase mil pessoas para a Paulista, das quais muitas votaram no Bolsonaro, como eu. É um pontapé inicial, não contra o Bolsonaro em si, mas na ideia preventiva para que não fortaleça esse tipo de ditadura.”

“Eu sempre fui excluída de tudo. Democracia nunca foi realidade para mim. Até os 30 anos da minha vida eu não tinha noção de direito algum, muito menos cidadania. Em 2015, quando tive a oportunidade de retomar meus estudos, em uma versão piloto do Projeto Transcidadania, entendi que eu era uma cidadã como qualquer um, e não aquela pessoa excluída e marginalizada que a sociedade me fazia acreditar.

Para os alunos daquela turma aquilo era uma coisa normal. Para mim era tudo. O que esperavam de uma travesti na escola? Qualquer coisa menos se tornar a melhor aluna da classe. E foi o que fiz. Surgiu um convite para trabalhar no Centro de Cidadania LGBT, no Arouche, e a partir dali comecei a me enxergar com uma pessoa de direitos, o que me fez procurar diversos movimentos sociais.

Meu objetivo com os movimentos pró-democracia é ter meus direitos garantidos perante a lei. Sentimos que estamos ameaçadas a todo instante. E um presidente que insinua golpes militares, classifica antifascista como terrorista e exalta figuras do nazismo é uma ameaça para nós.

O discurso de ódio de Bolsonaro tem legitimado ataques à população LGBT. Logo que ele assumiu, nas esquinas em que eu trabalhava passavam homens tacando objetos em nós e dizendo que o Bolsonaro ia matar viado.

Mas os movimentos estão mais unidos e fortalecidos. E, na sociedade onde há forte preconceito, a democracia é uma luta contínua. Eu disposta a ir para as ruas assim que a pandemia acabar. Vejo que neste momento não se trata de partido político, e sim da democracia.”

“Sempre participei ativamente da vida política da minha cidade e do País. Sou carioca, criada na periferia do Rio. Minha trajetória política começou ainda na escola secundária, onde participei do movimento estudantil e da pastoral de favelas do meu bairro, que moldou minhas primeiras convicções sobre as cidades mais justas.

Entendo muito que desde as manifestações de 2013 os brasileiros mostram um incômodo represado com o modo de governança brasileiro, com pouca transparência, sujeita a corrupção, com a má distribuição dos recursos públicos e na forma da democracia.

Hoje, sou uma arquiteta que se formou em dois lugares, na periferia do Rio de Janeiro e na universidade. Minha inserção na vida política veio com naturalidade a partir de toda essa trajetória e se acentuou a partir da execução sumária de Marielle Franco, amiga e referência. Meu objetivo hoje é estabelecer um movimento sério de renovação de quadros da esquerda e implementar uma cultura política que dialogue de forma mais ampla, baseada na discussão de cidade e enraizada na vida da favela e da periferia.

Nesse sentido, minha vontade casa com o momento da vida política brasileira, onde temos de um lado um governo, que ataca as grandes maiorias, os pobres, os negros, a população LGBT, as mulheres, desrespeitando tudo e a todos com cinismo e práticas ilegais, como fake news que agora estão sendo investigadas até pelo STF.

Não posso ficar passiva diante destes acontecimentos, agravados com o massacre da população que sofre com esta epidemia e fica a mercê das autoridades sanitárias do País que agem de maneira irresponsável e criminosa. O manifesto que assinei é para mostrar não apenas a indignação, mas para reforçar o que os 70% da população brasileira quer hoje. ”

“Participei de muitos movimentos da história recente do Brasil. Diretas Já, impeachment dos ex-presidentes Collor e Dilma e manifestações de 2013 foram alguns.

Hoje, vejo um clima parecido com as Diretas Já, mas com a diferença que, naquela época, tínhamos um inimigo mais ‘palpável’. Naquela época, eram 20 anos de ditadura, visualmente, na cabeça das pessoas, estava claro quem era o inimigo. Agora é mais difuso. Uma parcela da população ainda acha que o STF está pisando na bola ou acha que o meio de resolver as coisas é através do fechamento do Congresso.

Em todos esses períodos que vivi, nunca senti uma ruptura institucional tão próxima. E sinto muito estarmos desmobilizados por qualquer entidade civil ou partido que possa nos dar voz.

Acredito que, para ganhar força, o movimento pró-democracia precisa ir às ruas e ser suprapartidário. Só assim conseguiremos dar freio à escalada autoritária no País.

Com a pandemia, meu sentimento é que se não houvesse a questão do distanciamento social teríamos as ruas com mobilizações próximas ao impeachment da Dilma ou 2013.

Minha participação em manifesto pró-democracia é justamente para tentar reverberar minhas ideias. Passei por muitos períodos da história recente indo ver ao vivo e a cores o que estava acontecendo. Depois desse anos, continuo acreditando na política e sendo um democrata. Acho que precisamos evoluir, trazendo a democracia para o dia a dia da população, mais próximo dos bairros e municípios.”

“Comecei a minha ‘vida de protesto’, vamos chamar assim, em 1964. Eu entrei para a Faculdade Nacional de Direito em 1º de abril de 1964 e deveria ter colado grau em 13 de dezembro de 1968. Não preciso dizer porque não tivemos colação… Cheguei com a ditadura e saímos com o AI-5. Só colamos grau depois.

Minha luta sempre foi pela Democracia e pelos Direitos Humanos. E neste momento, estamos vivendo uma situação absolutamente inédita. Durante toda a ditadura, eu não vi acontecerem coisas tão terríveis como estão acontecendo hoje no Brasil.

Nesse momento, o que me incomoda mais é esse gabinete do ódio, que está se expandindo de forma violentíssima. Eu saí de algumas redes sociais porque não aguentava mais receber ofensas.

O que eu pretendo, e é o meu sonho há 50 e poucos anos, é que a democracia instalada no Brasil seja obedecida. Que nós tenhamos um governo que zele pelo seu povo. Nós somos pagadores de impostos, seguidores da Constituição e temos que poder viver em paz, sem ter que diariamente viver em confrontos políticos.

No momento da ditadura eu era uma jovem idealista. Participei do movimento das Diretas Já, das caminhadas na Avenida Rio Branco (no Rio de Janeiro)… Hoje eu faria, novamente, tudo de novo. Só que as minhas pernas e a minha idade não me permitem mais.

Mas eu digo aos mais jovens: como naquela época nós fomos às ruas protestar, é nas ruas que o protesto tem que ser feito. Mas não agora, nesse momento que o isolamento é importante, porque se formos à rua nesse momento, estaríamos correndo risco de vida.

Assim que tivermos a chance, é na rua que temos que estar, porque foi nas ruas que vencemos a ditadura e conseguimos uma Constituição cidadã, que tem que ser respeitada. É por isso que eu sonho, é por isso que eu passei mais de meio século no campo de batalha e continuo nele até hoje.

Ser de esquerda ou ser de direita, hoje, eu não vejo um sentido grande nisso. Nós temos que salvar o país. Desde que não sejam fascistas, não importa se o que vem vai ser mais conservador ou liberal, isso a gente discute depois. O momento é muito grave e a gente tem que se unir e dar um basta.”

Estadão