Miriam Leitão: bolsonarismo não é uma ideologia

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Bolsonarismo é uma ideologia?
Por Míriam Leitão

21/06/2020 • 04:30

A resposta para a pergunta do título é não. É um amontoado de preconceitos com o ódio à democracia. O primeiro ponto desse conjunto disforme de ideias está na frase de Abraham Weintraub, de que todos os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) deveriam ir para a cadeia. Isso é a defesa do totalitarismo. Nem a ditadura militar fez isso. Quando se diz que alguém é defendido pela “ala ideológica”, é uma interpretação caridosa para um grupo de malucos que sonha com a ditadura de Bolsonaro. “Intervenção militar com Bolsonaro” é a faixa sempre presente nas manifestações governistas.

Não há um conjunto orgânico de ideias que se possa chamar de ideologia bolsonarista. O conservadorismo que defendem não é o pensamento conservador clássico. É o reacionário, no sentido técnico de saudosismo de um passado idealizado. Em cima da lareira do sítio bolsonarista de Atibaia havia uma bandeira escrito “AI-5”. O mesmo decreto que é defendido nas passeatas. A maioria das pessoas que grita por esse Ato Institucional não saberia dizer o que ele representaria na prática.

O ódio ao outro, ao diferente de si, é resumido na palavra “comunista”, conceito largo no bolsonarismo, no qual cabem todas as pessoas que não cultuam o mesmo chefe. Bolsonaro é o último prisioneiro da Guerra Fria. Ela já acabou há três décadas, mas ele continua caçando comunistas. E o faz por diversas razões. Primeiro, porque a sua mente se sente mais confortável em um mundo bipolar. As muitas complexidades contemporâneas o deixam confuso. Segundo, porque ele gostaria de ter experimentado o que seus heróis viveram, quando tiveram poder de mando nos porões dos quartéis. O maior dos heróis de Bolsonaro, como ele mesmo diz, é Carlos Alberto Brilhante Ustra. Terceiro, porque ele precisa fabricar um inimigo para vender aos seus seguidores.

A interpretação de que a chamada “ala ideológica” defenderia os valores cristãos e a ideia tradicional da família também não corresponde aos fatos. Certas denominações evangélicas se deixam usar como massa de manobra, levadas por líderes que têm interesses outros que não a fé. É evidente que um governante que quer armar a população, cultua o ódio, chafurda em palavrões e não demonstra compaixão com o sofrimento humano em uma pandemia não pode ser o exemplo dos princípios cristãos. A visão idílica da família tradicional, do tipo “até que a morte os separe”, também não combina com Bolsonaro. Ele se casou três vezes, jogou o segundo filho para disputar com a própria mãe na arena pública e disse que usava o apartamento funcional para “comer gente”. O moralismo bolsonarista é de fachada, para esconder sua coleção de preconceitos. Na questão da mulher, por exemplo, o governo brasileiro passou a votar junto com os países árabes mais fundamentalistas.

A interpretação de que o ex-ministro Abraham Weintraub seria a expressão mais forte dessa ala ideológica tem um problema. Ele não fez uma proposta educacional alternativa que fizesse qualquer sentido. Apenas demoliu políticas públicas ou as tornou inoperantes, e nada propôs em troca. Seus insultos à universidade mostram apenas ressentimento. A falta de coordenação com os estados e municípios era reflexo da sua incapacidade administrativa.

O lema anticorrupção também foi uma bandeira falsa, levantada por oportunismo político. Basta ver o caso Queiroz. Era prática antiga na família. Flávio, evidentemente, não era o único a usar recursos públicos para contratar funcionários fantasmas que retornavam parte do que recebiam para o chefe de gabinete, no caso, o hoje famoso Fabrício Queiroz. O contato imediato de Queiroz com a milícia no Rio de Janeiro é um indício de que o mundo de sombras vai além da corrupção política. Se pudesse, o bolsonarismo acabaria com os órgãos de controle. E tem tido avanços nesse projeto. O inusitado pedido da Polícia Federal para suspender a ação da última terça-feira contra alvos bolsonaristas, informação trazida por Bela Megale e Aguirre Talento, mostra o avanço do projeto de desmontar a PF.

O sonho maior bolsonarista é um regime autocrático. Por isso, os ataques tão frequentes ao Congresso, ao Supremo, à imprensa ou a qualquer voz divergente. Apurando bem o foco, o centro da chamada ala “ideológica” do governo é o próprio Bolsonaro e os seus filhos.

O Globo