E a lei da ditadura ressuscita em 2020

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Foto: Reprodução

Editada em dezembro de 1983, já nos estertores da ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional voltou aos bastidores do Palácio do Planalto 37 anos depois.

O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem se valido da legislação criada no arcabouço do regime de exceção conduzido pelos militares de 1964 a 1985 para amedrontar aqueles que o desagradam. Apesar de idealizada em meio às discussões de abertura política e redemocratização, a essência do texto tem resquícios do autoritarismo.

Uma charge de Renato Aroeira que associava o presidente ao nazismo; um artigo do jornalista Hélio Schwartsman questionando a conduta do governo no combate à pandemia de Covid-19, publicado com o título Por que torço para que Bolsonaro morra no jornal Folha de São Paulo; e mais recentemente declarações do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes associando a militarização do Ministério da Saúde a um suposto “genocídio”, foram repreendidas com a ameaça da lei.

Usada em casos pontuais, a legislação deixou de ser acionada com frequência após a promulgação da Constituição Federal de 1988 que preserva a soberania e a segurança interna do país, mas prevê outros entendimentos e formas de julgamento. O arcabouço jurídico caiu em desuso, segundo especialistas, por ter a pecha de “perseguição de opositores” e por usar métodos autoritários de um regime de exceção – como foi o dos militares.

Com a autorização de Bolsonaro, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, se valeu da lei e solicitou à Polícia Federal a abertura de investigações com base na norma assinada pelo então presidente da República general João Batista Figueiredo e pelos ex-ministros Ibrahim Abi-Ackel (Justiça) e general Danilo Venturini (chefe do Gabinete Militar).

Os 35 artigos da Lei de Segurança Nacional listam crimes contra a “ordem política e social” para fazer valer a maior parcela de suas punições. Citam ainda “terrorismo” e “inconformismo político”. Os delitos podem ser penalizados com prisão de até 20 anos.

No mesmo sentido, mas destinada à atividade jornalística, a Lei de Imprensa, editada em fevereiro de 1967, no fim do mandato do general-presidente Castelo Branco, permitia a censura e punições civil e penal a profissionais e órgãos de imprensa. Ela foi declarada inconstitucional 42 anos depois, em abril de 2009, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Para o historiador e professor aposentado de história e política contemporânea da Universidade de Brasília (UnB) Antônio José Barbosa, usar um dispositivo do regime de exceção nos tempos atuais prejudica a democracia.

“Pior que fazer uso da lei do período mais tenebroso do país é o modo pelo qual ela está sendo usada agora. Isso é de um ridículo atroz”, critica.

Barbosa acredita que a utilização da Lei de Segurança Nacional é uma demonstração de “descrédito e desapreço” pelo regime democrático e uma forma de tentativa de reprimir divergências.

“Nos últimos meses, nós vimos uma série de manifestações de rua no QG [Quartel General] do Exército, protestos antidemocráticos contra o Congresso e contra o STF e o governo não tratou de fazer uso para coibir esse tipo de ato”, conclui.

Rui Tavares Maluf, cientista político e sociólogo da Universidade de São Paulo (USP), tem acompanhado os desdobramentos das investidas do governo. No entendimento dele, será pouco possível que o uso da lei tenha aplicação naquilo que o governo quer.

“É uma tentativa de ganhar ‘espaço no interesse de Estado’ e desviar a atenção do que cabe ao governo. É um refugio da conduta que tem tido ou deixado de ter durante a pandemia, nos cuidados com a educação”, pondera.

O especialista também aponta os atos antidemocráticos como passíveis de punição pela legislação. Vale ressaltar que os casos são investigados pelo STF com base na mesma lei. “Isso claramente fere o Estado Democrático de Direto. Incitar ações coletivas contra o regime democrático pode ser passível de penalização”, explica.

O artigo 16 proíbe “integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça”.

Em três décadas e meia, a Lei de Segurança Nacional foi usada em três situações. Somente os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) invocaram o dispositivo. Depois, durante as eleições de 2018, ainda no governo Michel Temer, quando Bolsonaro foi esfaqueado por Adélio Bispo (veja detalhes abaixo).

A Constituição, de 1988, não trata de “segurança nacional”, como a lei da ditadura, mas mantém a preocupação com a segurança do país em outros dispositivos e cláusulas pétreas, ou seja, invioláveis.

O uso da Lei de Segurança Nacional:

2000 – O então presidente Fernando Henrique Cardoso usou o dispositivo contra invasões do Movimento dos Sem-Terra (MST).
2013 – Em junho, mês de ebulição nas ruas, a ex-presidente Dilma Rousseff usou artigos da lei para conter manifestações que terminavam com atos de grupos radicais.
2018 – Adélio Bispo, que deu uma facada no então candidato à presidência Jair Bolsonaro, foi enquadrado na legislação.
O cientista político Rui Tavares Maluf faz uma reflexão sobre a vigência da lei ainda nos dias atuais. “Se a lei existe e não foi revogada, é porque o regime democrático deve ter entendido que poderia ser necessária. Ela foi aprovada no fim da ditadura e sucessivos governos e o Congresso conviveram com ela. É preciso avaliar leis anacrônicas, superadas ou em ruído com a Constituição”, salienta.

No entendimento dos especialistas ouvidos pelo Metrópoles, o uso excessivo da lei é uma característica dos governos autoritários. Para eles, tratar qualquer assunto como de segurança nacional contradiz a Constituição e exige um filtro constitucional.

Metrópoles