Bolsonaro dobra a aposta na ONU e corre risco

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Foto: Marcos Corrêa/PR

Jair Bolsonaro sempre dobra a aposta – agiu dessa forma desde a campanha que lhe deu a vitória e durante esse ano e nove meses de governo. Foi assim também no discurso virtual que fez na abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas de 2020, na terça, 22. Aos indícios de responsabilidade direta de seu governo no descontrole sobre as queimadas na Amazônia e no Pantanal, Jair respondeu com a autossuficiência de um Nero de opereta. O imperador foi um personagem histórico que, segundo a lenda, diante da velha Roma em chamas, tocava harpa em busca de inspiração para um poema que lhe satisfizesse o espírito. O presidente também se mostrou indiferente e, da mesma forma, procurava algo: popularidade. Naturalizou a destruição ambiental sem precedentes – obra de índios e caboclos, deu de ombros, no vídeo enviado à ONU.

Nem poderia ser de outra forma, do ponto de vista do bolsonarismo. A corrente chefiada pela Primeira Família não se importa muito com o real. O próprio presidente da República aposta nas “narrativas”, invencionices ou fatos distorcidos com os quais embrulha a realidade para apresentá-la em formato mais palatável a seus crédulos seguidores nas redes. Assim, em seu discurso, ignorou a longa lista de medidas antiambientais da gestão que começou no ano passado. Estão nela as acusações não comprovadas que provocaram a suspensão do Fundo Amazônia; a interferência em fiscalizações que combatiam crimes ambientais; o corte em projetos de preservação. Está ainda o encontro do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com suspeitos de crimes ambientais, levados de avião oficial, depois de lhes dar razão em suas reclamações contra os fiscais. Esse episódio está sob investigação da Procuradoria da República.

Coerente com ataques anteriores a órgãos que contrariam a visão oficial da política ambiental brasileira, como as pressões que resultaram na saída de Ricardo Galvão da chefia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Bolsonaro fez um pronunciamento internacional voltado para os seus. Era para o núcleo duro do bolsonarismo que o presidente falava ao apresentar ao mundo o Brasil como vítima de uma conspiração global no quadro da disputa por mercados agrícolas. O elogio ao agronegócio –cuja produção em bases ambientais às vezes duvidosas é alvo de questionamentos na Europa e que luta para se livrar da imagem de destruidor da natureza –, também funcionou como um afago a setores que o apoiam desde a campanha de 2018. E uma espécie de sinal: prossigam.

Sempre na linha habitual dos discursos da sua corrente política, o presidente, em seu pronunciamento, misturou a vitimização – postura imitada por Carlos Bolsonaro – com tom de desafio a adversários reais ou imaginários. Nem uma linha do discurso presidencial abordou o desmonte da fiscalização ambiental, a suspensão do apoio ao combate aos madeireiros ilegais, o crescente garrote que aperta o Ibama, o corte de verbas para proteger a Amazônia em 2021, o virtual estímulo às quadrilhas de mineradores ilegais. Como Salles propôs na reunião ministerial de 22 de abril, a boiada está passando.

Nesse cenário negacionista no meio ambiente, matas e biomas intocados e índios ainda não aculturados são vistos como estorvos ao “progresso”. O bolsonarismo enxerga avanço na mineração sem limites, nas plantações de soja e outras commodities e na criação extensiva de gado sobre campos onde antes havia uma rica biodiversidade. Como na primeira Conferência sobre Meio Ambiente, em 1972, no governo Médici, Bolsonaro acena ao planeta com um “bem-vinda, poluição”. Às cobranças internacionais , o governo reage com acusações e ameaças, como o boicote proposto pelo general Augusto Heleno. O ministro do Gabinete de Segurança Institucional atribui o fogo nas nossas matas a causas naturais, quando até o setor menos atrasado do empresariado já identificou nele sinais de piromania criminosa.

O pronunciamento de Bolsonaro também foi coerente com as propostas mais recentes do governo para o meio ambiente. Elas indicam esvaziamento ainda maior dos órgãos ambientais, com a criação de estruturas paralelas às que já existem e, claro, em sua opinião, atrapalham o progresso. Uma das medidas é a aquisição milionária, pelo Ministério da Defesa, de um satélite para fazer o mesmo trabalho do Inpe, mas sob controle castrense. Outra é formação de uma “Força Tática da Amazônia” , com poderes de fiscalização ambiental e integrada, claro, por militares da reserva. Enquanto isso, faltam fiscais ambientais.

Diante do mundo, Bolsonaro dobrou a aposta. Com seu discurso – também repleto de dados errados sobre a covid-19 e com a defesa de uma política exterior com toques religiosos, 300 anos anacrônica – reafirmou sua identidade direitista para os setores que o veneram por aqui. No exterior, porém, ajudou a aprofundar o isolamento do Brasil e a imagem de vilão ambiental. O cassino ambiental do presidente poderá ter custos para o País.

Estadão