Ombudsman diz que Folha teve medo de dizer que Bolsonaro mente
Foto: Carvall
Flavia Lima, ombudsman da Folha de SP, em sua coluna dominicial diz que a Folha “amarelou” — uma alusão à campanha do jornal em defesa da democracia que prega uso de roupas de cor amarela-Brasil — ante a necessidade de chamar de mentiras as mentiras de Bolsonaro na ONU. Confira a coluna
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Quem decidiu checar a capa da Folha impressa de quarta (23) para ter uma noção de como foi o discurso de Jair Bolsonaro na Assembleia Geral das Nações Unidas ficou sem entender o que aconteceu.
Em uma fala na qual o presidente disse que não faltaram, nos hospitais, os meios para atender aos pacientes de Covid, que houve uma alta do investimento estrangeiro no Brasil no primeiro semestre e que mantém uma política de tolerância zero com o crime ambiental, entre outros dados falsos, a Folha estampou em manchete o título ” Bolsonaro se defende na ONU sobre pandemia e queimadas”.
Segundo o dicionário Aurélio, um dos significados do verbo defender é ‘repelir ataque ou agressão a si próprio’, o que se encaixa na retórica bolsonarista de que o governo sofre investida de inimigos a serem combatidos. Sendo assim, o verbo usado pelo jornal presta um enorme serviço à estratégia diversionista e negacionista do presidente, mas pouco contribui para o entendimento do que se passou.
É preciso dizer que o conteúdo noticioso estava bem contextualizado, com a íntegra do discurso acompanhada das inconsistências ditas pelo presidente esmiuçadas ponto a ponto.
Mas como disse um leitor, “todos sabemos que, na maioria das vezes, o que as pessoas leem é só a manchete e, segundo ela, a impressão que ficou é que Bolsonaro falou de política num nível aceitável. Tem que dar nome aos bois da boiada. Mentira é o nome”.
A palavra mentira aparece pouco em títulos do jornal e, quando isso acontece, está sempre na boca de alguém, como em “Maia rebate Guedes sobre auxílio de R$ 600 e acusa governo de mentir em ação ao STF”.
Nos últimos 12 meses, encontrei o uso direto do verbo pelo jornal apenas em alguns títulos atribuídos ao depoimento de um ex-funcionário de uma agência de disparos em massa, Hans River do Nascimento (“Ex-funcionário de empresa de disparo em massa mente a CPI e insulta repórter da Folha”).
Jornais têm certa dificuldade de chamar algumas coisas pelo nome—mentira é uma delas. E, de fato, há explicações bastante razoáveis para justificar o uso de “errar” no lugar de “mentir”. Segundo as agências de checagens, empresas cujo trabalho é justamente rastrear as falácias encontradas no noticiário, a mentira pressupõe intencionalidade, algo difícil de ser avaliado. Portanto, in dubio pro reo.
No entanto, se os jornais não têm condições objetivas de tachar alguém de mentiroso, que deem um jeito de expor as contradições da fala no título, evitando a naturalização do discurso. Nunca é demais lembrar que Bolsonaro usa a mentira como estratégia, e a imprensa brasileira ainda não sabe bem o que fazer com isso.
Para ficar apenas no exemplo da ONU, algumas das afirmações feitas na assembleia deste ano são muito parecidas com declarações dadas em 2019, quando ele afirmou, por exemplo, que seu governo tinha compromisso com a preservação ambiental.
O curioso é que, também no ano passado, a manchete escolhida pela Folha impressa seguiu pelo mesmo caminho, ao apresentar a posição do presidente sem contraponto (“Bolsonaro ataca críticos na ONU e vê falácias ambientais”).
No ano passado, ele atacou. Neste se defendeu. Quando se trata da cobertura do discurso nas Assembleias da ONU, Bolsonaro ganha manchetes que nem sua Secretaria de Comunicação faria melhor.
Lá fora, entre os esforços mais emblemáticos de apontar inconsistências na fala de uma autoridade está o do jornal The Washington Post, que sustenta uma espécie de ‘mentirômetro’, segundo o qual o presidente Donald Trump já fez mais de 20 mil afirmações falsas ou enganosas.
Ainda assim, não se sabe se iniciativas como essa ajudam a estabelecer um consenso sobre o que é verdade e o que é mentira, a partir do qual o diálogo se torna possível. O certo é que falar em “polêmicas de Bolsonaro” ou dizer de modo até criativo que o presidente “recortou a realidade” não contribuem em nada.
Sempre foi importante pensar na escolha e no significado das palavras usadas nos primeiros contatos do leitor com a notícia (títulos, subtítulos e legendas de foto), mas a relevância cresce em momentos nos quais a desinformação é moeda corrente nas redes sociais ou tem origem exatamente no lugar de onde se esperavam palavras e atos responsáveis.
Entre ironias feitas à chamada da Folha nas redes sociais, um internauta disse que tem medo de um dia abrir os jornais e encontrar manchetes como “Presidente se defende do STF cassando três ministros”. O leitor fez uma provocação, obviamente, mas a preocupação de fundo faz sentido: em nome de um pretenso equilíbrio da cobertura, o jornal não pode se dispensar da tarefa de dar o peso —e o nome—devido aos fatos.