“Orçamento secreto” ameaça a democracia”, diz professor da USP
Foto: Daniel Teixeira/Estadão
Em meio às críticas sobre a aprovação de um fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões pelo Congresso, o professor e advogado Heleno Taveira Torres, titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP, chama a atenção para outro tipo de financiamento político que, em sua visão, é mais caro e representa ameaça real à democracia.
Para o eminente professor, o uso das emendas de relator-geral do orçamento, mecanismo do chamado orçamento secreto, denunciado pelo Estadão, traz um desequilíbrio eleitoral ainda mais grave, ao permitir que apenas aliados do governo destinem a suas bases políticas repasses de mais de R$ 38 bilhões só entre 2020 e 2021. E a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022, aprovada no último dia 15, renova o repasse de verbas pela chamada RP9 para o ano eleitoral, em valores ainda não definidos.
Torres é a favor da manutenção do valor do fundo eleitoral de 2018, R$ 1,7 bilhão atualizado a valor presente, por considerar o financiamento legítimo, proporcional entre os partidos, em conformidade com as leis e a Constituição. Entretanto, reconhece que a emenda de relator-geral cria uma espécie de “bolsa reeleição” seletiva, para governistas. “As emendas de relator, sem a aprovação do fundo eleitoral, tornam-se um instrumento de desequilíbrio avassalador sobre todos os partidos de minoria e de oposição”, disse o professor. “Certamente corremos o risco de o modelo partidário e político brasileiro se tornar um faz-de-conta”, afirmou Torres.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O custo financeiro da democracia tem ampliado durante o governo Jair Bolsonaro?
O Brasil tinha um financiamento de campanha baseado em doações privadas, e nós percebemos que isso estimulava fortemente a corrupção. Veio a Lava Jato para comprovar que isso ocorria de fato. Com a mudança para o financiamento público de campanha, que deve ser compreendido como o custo da democracia, vimos que aumentou de forma excessiva, o que tampouco é desejável. O Brasil precisa ter uma gestão eficiente dos gastos eleitorais, pois a campanha política se presta para escolha do corpo dirigente dos maiores cargos da república. Mas não se pode querer que, em um momento como esse, em que a austeridade se impõe a todos, os valores de hoje sejam iguais aos que nós tínhamos quando havia apoio por empresas. Se ele é um fundo, agora, baseado exclusivamente no financiamento público, que ele seja austero e coerente com os princípios de administração pública, como eficiência, moralidade e economicidade.
Aumentar o fundo eleitoral é um equívoco? O que deveria ser feito?
O fundo eleitoral e o fundo partidário estão autorizados por lei e pela Constituição. Eles são os instrumentos de equilíbrio eleitoral, na medida em que permitem igualdade de tratamento entre oposição e partidos aliados ao governo. O que eles devem receber é um financiamento compatível, coerente com os gastos e demandas para que a democracia permita uma escolha justa dos representantes do povo. Agora, o que nós não podemos admitir são justamente os gastos excessivos, de grande repercussão. Se houver veto presidencial, deve ser acompanhado de uma revisão desses valores. Retirar, jamais. O povo tem que saber que a democracia tem um custo, e que esse custo precisa também ser avaliado pela importância na alternância de poder. Fundos não são aberrações. Eles são devidos e necessários. O que não representa uma autorização para que o financiamento das campanhas seja excessivo, porque a administração pública tem princípios a seguir, como economicidade, legalidade ou legitimidade do gasto, impessoalidade, moralidade e publicidade.
O aumento do fundo eleitoral se deu em um momento em que as despesas com emendas parlamentares batem recordes, com o chamado orçamento secreto. Como o senhor relaciona esse uso das emendas para aliados do governo e a ampliação do fundo eleitoral?
Nós temos que dizer, com todas as letras, que a emenda de relator é inconstitucional, por vários motivos, mas também pelas repercussões eleitorais que ele causa. Nas emendas individuais e nas de bancadas, que são as únicas autorizadas pela Constituição, não há dirigismo de preferência partidária, ou relacionada com a base aliada, de proteção do governo no Congresso. A Constituição exige que as emendas sejam “equitativas na execução”, o que se obtém mediante “critérios objetivos e imparciais” e que sejam atendidas “de forma igualitária e impessoal”, independentemente da autoria. A inconstitucionalidade gravíssima desse orçamento secreto é dar o cheque em branco para que os parlamentares da base aliada possam fazer campanha política, em pleno ano eleitoral, como será o caso do ano que vem, porque nisso não há limitação, não há impedimento… Nós veremos isso acontecer a pretexto de que estão apenas aplicando verbas orçamentárias, autorizadas por lei. E teremos, ao longo desses últimos dois anos, praticamente quarenta bilhões destinados a esse esforço de reeleição de parlamentares e governo. Fora o que vai entrar no próximo exercício. Então, isso é muito grave porque desequilibra o processo eleitoral.
Como se dá esse desequilíbrio na eleição?
Numa eleição, o que se espera é que todos tenham iguais condições de concorrer. Ora, essa igualdade está flagrantemente prejudicada nas emendas de relator, porque estão dirigidas unicamente aos interesses políticos da base aliada. É lógico que isso garante a maior e contínua visibilidade dos parlamentares que servem aos interesses. Ou, pelo menos, aqueles que foram prestigiados com essa verba, passam a ter uma maior visibilidade nos seus estados, junto a sua base de eleitores. Isso, para o eleitor, logicamente tem uma influência, sim. Que é uma influência conforme a vantagem eleitoral que se percebe claramente para aqueles que têm ou não têm acesso a essas verbas de emendas de relator-geral. Com esse orçamento secreto, de fato, os partidos que estiverem na base aliada nem precisam do fundo partidário. Porque terão recursos para a promoção dessa base aliada, sem limites. Com ampla margem de diferença.
Isso cria uma espécie de palanque permanente?
Permite uma visibilidade constante que o parlamentar que seja de oposição, ou que não tenha acesso a essas verbas, não possuem, não é mesmo? Porque há um benefício de escolha livre, do relator (e dos presidentes de Câmara e Senado), sobre a quem dirigir essas emendas, ou quais serão autorizadas com prioridade. E, logicamente, esse atendimento se faz por interesses puramente eleitorais. Então, o palanque permanente fica garantido. E, logicamente, é uma espécie de “bolsa reeleição”, ou algo equivalente.
Nesse cenário, como ficam a oposição e as minorias?
Estas teriam acesso às emendas individuais ou às emendas de bancada. Não às emendas de relator. Como essas emendas de relator não estão submetidas aos limites constitucionais, porque foram criadas à revelia da Constituição, elas têm como consequência um desequilíbrio na democracia brasileira. Porque desiguala os partidos de minoria, aqueles que não têm acesso a esse grau de seletividade do gasto público… e, ao mesmo tempo, aos partidos de oposição. Com isso, se torna muito difícil falar em “terceira via” ou a “renovação do congresso”, porque o acesso aos recursos públicos resta desequilibrado com essas emendas de relator. Por isso, estas emendas são inconstitucionais por razões financeiras, mas também pelo que elas descumprem em relação ao equilíbrio democrático dos princípios eleitorais. Nenhum candidato independente pode ter chance em uma eleição dessa forma. (Isso) Agride a minoria. Agride os candidatos que têm propostas, mas não têm acesso a esses recursos. As emendas devem ser aprovadas pela relevância delas, e não pelas pessoas que as indicam. E também devem observar os mesmos preceitos de preservação da democracia, ou seja, sem direcionamento. Nenhuma dessas orientações se aplica, hoje, às emendas de relator. Representam um gravíssimo prejuízo às finanças públicas brasileiras e à democracia. Por isso são todas inconstitucionais, e, certamente, isto será reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, naquelas Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais 850, 851 e 854.
Havendo o veto do fundão e, ao mesmo tempo, a manutenção das emendas de relator-geral, qual é a consequência dessa possível combinação?
Se o Presidente veta o fundo, e o Congresso não estabelece uma verba razoável e suficiente para o financiamento das campanhas eleitorais, nós teremos uma prevalência esmagadora dos beneficiários das emendas de relator. As emendas de relator, sem a aprovação do fundo eleitoral, tornam-se um instrumento de desequilíbrio avassalador sobre todos esses partidos de minoria e de oposição. Não há candidatura possível diante de um enorme volume de recursos públicos destinados para a visibilidade de candidatos. Com relação à presidência, fenece de vez qualquer expectativa de terceira via. Em relação aos parlamentares beneficiados, reduz-se a possibilidade de renovação democrática do Parlamento. Porque esses que estão beneficiados passam a ter, ou transmitir para o seu eleitor, a demonstração de que conseguem verbas e trabalham em favor do povo. Então, com isso você tem a manutenção e a continuidade do governo e sua base aliada, fundados nesse modelo de financiamento.
Esse modelo também dá superpoderes aos principais nomes do Congresso, que poderão ter influência no destino desses valores do RP9?
Exato. Os presidentes (da Câmara e do Senado) passam a ter um poder que não está autorizado pela Constituição, que é o de direcionar, durante a execução do Orçamento público, a possibilidade de créditos orçamentários. A Constituição nunca os autorizou a tanto. Isso contraria todos os princípios orçamentários. São superpoderes que denigrem a democracia. Porque eles não são usados para bons propósitos, mas para cooptação de votos em leis importantes, como privatizações, como reformas que estão em curso, administrativa, tributária… Esses superpoderes, para decidir a respeito de quem os recursos irão beneficiar, de fato, podem dirigir na votação de matérias importantes no Congresso. Essa distribuição de recursos de forma aleatória, sem critérios, que a emenda de relator permite, tira a independência do parlamentar. Para se reeleger, em uma forma de sobrevivência política, pode aceitar a renúncia à sua independência e votar de forma diferente daquilo que a sua consciência determinaria. E isso é muito ruim para uma democracia. É possível que os parlamentares que estão recebendo essas verbas de emenda de relator sintam-se obrigados a um dever de lealdade, comprometidos e alinhados com os interesses que os presidentes das Casas tenham em relação a cada uma das matérias estratégicas.
O que seria prioritário para resolver neste cenário?
Primeiro, o que é possível, e que só o Supremo pode resolver, que é declarar a inconstitucionalidade dessas emendas de relator. Pois a Constituição só admite as emendas individuais ou aquelas coletivas de bancada ou de comissão, segundo os limites equitativos e fundados na impessoalidade. Essa decisão do Supremo é urgente. Porque, enquanto ela não vem, o dinheiro público está sendo dragado para interesses pessoais e eleitoreiros, e não para recuperação dos contingenciamentos do gasto público. É urgente que se acabe com a emenda de relator. Uma despesa criada por lei orçamentária, uma aberração jurídica. Essa, sim, induz os parlamentares ao fisiologismo, à dependência do governo. Isso é muito ruim, é antidemocrático. Nos gastos partidários, com fundos eleitorais, ou mesmo naquelas emendas constitucionais legítimas, as individuais ou de bancada, devem ser observados os princípios que se impõem a toda a administração pública, como são os da moralidade, da legalidade, da economicidade, da impessoalidade e da eficiência. Os partidos políticos devem existir, ser fortes, mas devem ser eficientes. Devem gastar o menos possível nas eleições. Cientes de que estão gastando recursos provenientes dos impostos que a população, com o suor e com sangue, durante essa pandemia, tem pagado aos cofres públicos brasileiros.
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