Politólogo compara Bolsonaro a Mussolini por atacar eleições

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Quando o Brasil ganhou seu primeiro Código Eleitoral, em 1932, as fraudes eram comuns no país, e combatê-las tornou-se argumento central para a criação do novo sistema.

Passados 90 anos, não há sinais das velhas falcatruas, mas o presidente Jair Bolsonaro (PL) evoca o fantasma da fraude para atacar as urnas eletrônicas.

De acordo com o cientista político Paolo Ricci, professor da USP, o alvo de Bolsonaro não é a urna em si, mas todo o processo eleitoral.

“Trata-se de retórica discursiva típica de um líder populista autoritário visando desqualificar não os adversários, mas o sistema como um todo” afirma Ricci. “[Com isso], questiona-se a essência do funcionamento da democracia. A dizer, eleições limpas e sem interferência externa.”

Retrato fechado no rosto de homem de cabelo escuro e barba na frente de uma estante cheia de livros
O professor Paolo Ricci, do Departamento de Ciência Política da USP – Arquivo pessoal
Ricci organizou o livro “O Autoritarismo Eleitoral dos Anos 30 e o Código Eleitoral”, no qual um conjunto de artigos explora as diversas mudanças ocorridas quase um século atrás, incluindo a instalação da Justiça Eleitoral.

Segundo Ricci, dois políticos daquela época podem ser lembrados para ajudar a entender o ataque de Bolsonaro ao sistema eleitoral: Getúlio Vargas (1882-1954) e Benito Mussolini (1883-1945).

O primeiro governou o país durante quase 20 anos e de um golpe em 1937, implantando a ditadura do Estado Novo. O segundo comandou a Itália por pouco mais de 20 anos e instaurou o fascismo no país

No livro “O Autoritarismo Eleitoral dos Anos 30 e o Código Eleitoral”, o sr. propõe uma revisão da interpretação clássica segundo a qual a Justiça Eleitoral surgiu para coibir fraudes nas eleições. Por quê? A história das instituições políticas nos ensina que as mudanças das regras devem ser pensadas levando em conta o interesse de quem as propõe, assim como a forma pela qual se implementam.

No primeiro caso, temos que tentar desvendar a lógica da mudança. Isso significa responder à seguinte pergunta: o que os interessados ganham e perdem com a reforma?

No segundo, trata-se de analisar como a reforma na prática foi implementada. Afinal, quem disse que já em 1932 a Justiça Eleitoral atua de forma independente?

Então, a ideia foi resgatar a história, voltar no tempo, para pensar como os atores da própria Justiça Eleitoral, assim como políticos e partidos, atuavam e se movimentavam.

E o que os interessados ganharam e perderam com a criação da Justiça Eleitoral? Na prática, os políticos perderam controle sobre a burocracia eleitoral, isto é, algumas fases do processo eleitoral, desde a organização da eleição, com determinação das seções eleitorais, constituição das mesas eleitorais etc., até contagem dos votos. Anteriormente, tudo ficava nas mãos dos políticos.

Mas eles continuam exercendo uma forte influência sobre um momento específico: o alistamento eleitoral. Quem alista eleitores é o candidato, auxiliado por seus correligionários.

E quanto às fraudes? O sr. concorda que elas eram um grande problema antes da criação da Justiça Eleitoral? Depende. Se pensarmos em como deveria funcionar a democracia, a resposta é sim. Sabemos que, nas democracias, a fraude é um elemento perturbador do equilíbrio representativo. A meu ver, porém, essa forma de pensar a fraude tem acabado por desvirtuar o foco dos estudiosos.

O que afirmo é que a democracia não estava na pauta durante a Primeira República. Ou seja, para entender a lógica da disputa política na época, temos que entender como as elites políticas disputavam o poder. E as elites governistas e oposicionistas faziam da fraude um mecanismo para disputar cargos representativos.

Nessa lógica, a fraude deixa de ser um problema e se torna um objeto de pesquisa. Isso é mais interessante e estimulante do que ficarmos aqui resmungando sobre o passado fraudulento daquelas eleições.

Pensando na fraude como objeto de pesquisa, o Brasil de 1932 estava atrasado ou adiantado em relação aos principais países da época? A fraude não é uma característica do Brasil. Ela era praticada em outros países de forma maciça. O Código Eleitoral de 1932 se inspira na legislação argentina e uruguaia, países que já haviam adotado medidas buscando tutelar o eleitor ou criando regras para a não interferência dos políticos durante o processo eleitoral.

Países europeus também haviam caminhado para reformas que visavam criar garantias para o voto. Ou seja, há alguns países na vanguarda, como Reino Unido e Austrália, mas, em termos comparativos, 1932 não inova, refletindo uma tendência já observada de introdução de normas e medidas que limitem a interferência no processo eleitoral.

O sr. afirma no livro que, em 1932, o governo federal encampou o discurso antifraude para apoiar a criação da Justiça Eleitoral, embora o discurso não tenha passado à prática de imediato. Hoje, de certa forma, temos o oposto: o presidente evoca o fantasma da fraude, embora não mostre provas disso. Como explicar essa atitude? Trata-se de retórica discursiva típica de um líder populista autoritário visando desqualificar não os adversários, mas o sistema como um todo.

Um esclarecimento é necessário aqui. Nem todos os populistas atuam contra as regras eleitorais e as regras da democracia em geral. Muitos dos populistas europeus jogam as regras da democracia e não as questionam. Propõem reformas eleitorais, mas aceitam mudanças que proporcionam vantagens mistas, isto é, favorecendo outras forças políticas.

O autoritarismo está em ir além disso. Ao apontar o dedo contra o sistema eleitoral como um todo, ainda que especificamente tratando das urnas eletrônicas, questiona-se a essência do funcionamento da democracia. A dizer, eleições limpas e sem interferência externa.

Por que o senhor diz que atacar as urnas eletrônicas é questionar a essência do funcionamento da democracia? Bom, não é um ataque às urnas em si o problema. Todo mecanismo eleitoral está sujeito a críticas e pode ser modificado, quando não melhorado. Aliás, faz anos que há no Congresso projetos tramitando sobre o assunto, isto é, bem antes de Bolsonaro.

O problema está no modo que isso é feito. Sem evidências e provas contundentes, desqualifica-se um mecanismo que até agora não mostrou sinais de permitir violação da “verdade eleitoral”, para recuperar uma expressão dos anos 1930.

O objetivo não é a urna, mas desqualificar o processo eleitoral.

Funcionários do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná durante expediente na secretaria do tribunal, em 1933, ano das primeiras eleições com a Justiça Eleitoral – Arquivo Nacional
​Olhando pela perspectiva histórica, qual a comparação para essa tentativa de Bolsonaro de desqualificar o processo eleitoral? Primeiro, gostaria de voltar à época do Código Eleitoral. [Getúlio] Vargas e os revolucionários de 1930 desqualificaram o regime representativo da Primeira República, etiquetando-o de fraudulento e falseador da verdade eleitoral.

A construção de uma narrativa contra o processo eleitoral foi crucial para colocar o Código Eleitoral como símbolo de uma grande mudança.

É até interessante que essa narrativa tenha se mantido até hoje, isto é, relegando a experiência eleitoral da Primeira República a um mero triunfo da intervenção política sobre o processo eleitoral.

Mas talvez seja interessante pensar o caso italiano. Em 1919, a Itália introduziu a [eleição] proporcional. Esse sistema favorece a entrada de vários partidos e a fragmentação no Parlamento.

Mussolini, já primeiro-ministro em 1922, persegue uma reforma desse sistema, em busca de uma alternativa capaz de constituir um governo “não vinculado a compromissos anteriores, livre de proibições intransponíveis, não sufocado por divisões, não viciado em suas origens pelas diferenças ingênuas de tendências e correntes”.

Está aí a ideia de um líder que possa governar sem outras forças políticas, sem compromissos que apenas sufocariam a ação do governo.

Do ponto de vista da moralização do processo eleitoral e da coibição de fraudes, como se comparam as eleições deste ano com as de quase um século atrás, pensando sobretudo nas fake news e nas regras dribladas na internet? Se isso mostra a urgência de pensar normas novas para reagir aos desafios da internet (falando em termos gerais), também demonstra que a fraude é um conceito em movimento, isto é, que deve ser pensado e revisto continuamente tendo como fim único a defesa de práticas eleitorais que tutelem a liberdade de expressão dos indivíduos.

O sr. considera que hoje em dia exista algum risco desse ponto de vista, ainda que não na forma de fraudes no processo de votação? Suborno, venda de votos, intimidação eleitoral sempre existirão. A questão é quanto tais aspectos marcam a dinâmica eleitoral. Não me parece que, no Brasil, o problema esteja na relação com o eleitorado, mas sim na forma pela qual candidatos e partidos arrecadam recursos para competir.

Eis o tema espinhoso do financiamento. Se realmente se quer melhorar nossa democracia eleitoral, então é aí que se deve intervir.

RAIO-X
Paolo Ricci, 49. Graduado pela Universidade de Bolonha (Itália), mestre e doutor em ciência política pela USP, é professor do Departamento de Ciência Política da USP. Organizou os livros “O Autoritarismo Eleitoral dos Anos Trinta e o Código Eleitoral de 1932” (Appris, 2019) e “As Eleições na Primeira República” (Tribunal Superior Eleitoral, 2021)

Folha de SP