Battisti ataca Lula em entrevista

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Foto: Alberto Pizzoli/AFP

​Da prisão calabresa de Corigliano Rossano, pouco antes de iniciar uma segunda greve de fome desde que está detido, o ex-terrorista Cesare Battisti mandou uma carta à mão: “Há muita coisa para esclarecer, outras a desmentir. Inclusive algumas declarações falsas do Lula”.

Era abril de 2021 e o preso do sistema carcerário italiano que por mais tempo driblou o Judiciário do país concordava em se corresponder para falar sobre o final de sua longa epopeia, encerrada naquela ocasião havia mais de dois anos devido à mudança de vento no Brasil, antes com Michel Temer, depois com Jair Bolsonaro.

O Brasil foi sua casa por 14 anos graças principalmente ao empenho de Lula e do PT, que compraram uma briga internacional para dar abrigo ao ex-integrante de um grupo terrorista de esquerda condenado por quatro homicídios ocorridos no chamado anos de chumbo da Itália, entre o final dos anos 60 e o início dos 80 do século passado.

Battisti reconhece que o partido e seu líder-maior fizeram muito por ele, mas se sente descartado. Seu incômodo e a disposição para falar a respeito surgiram após o pedido de desculpas do ex-presidente em rede nacional na Itália, no ano passado, quando reconheceu o erro de tê-lo mantido no Brasil.

“Todos sabemos que Lula é capaz de tudo para colocar de novo a faixa de presidente. O animal político que nunca se contradiz. Aconteceu também comigo de admirar seu cinismo político (no sentido vulgar do termo) e o extraordinário jogo de cintura”, disse.

Aos 67 anos e com poucas chances de aliviar –no curto prazo– a pena de prisão perpétua, Cesare Battisti concede uma entrevista pela primeira vez desde que voltou à Itália, há três anos e meio. A Folha a publica com exclusividade.

A série de correspondências se iniciou em abril de 2021, no mesmo mês da entrevista de Lula na Itália, e continua até os dias atuais. Ele fala sobre seus últimos momentos no Brasil, a fuga e prisão na Bolívia e o retorno ao território italiano. Houve uma tentativa de entrevistá-lo pessoalmente, mas o encontro não foi autorizado pela penitenciária.

A sua história no Brasil deixou marcas na política, no Judiciário e na diplomacia. Três personagens brasileiros deste 2022 tiveram influência decisiva na passagem de Battisti pelo país.

Lula o abrigou no seu último dia no Palácio do Planalto, em dezembro de 2010, argumentando que, caso voltasse ao seu país, poderia sofrer perseguição por “opinião política”.

O ministro do STF Luís Roberto Barroso foi seu advogado no processo de extradição na corte encerrado em 2010, antes ainda de virar ele próprio um integrante do Supremo.

Bolsonaro, por sua vez, prometeu na campanha eleitoral de 2018 a sua extradição, o que levou o italiano a fugir para Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, onde foi detido e mandado de volta para casa.

Ao falar de Lula, Battisti estava contrariado com a entrevista do ex-presidente a um telejornal da RAI, a TV pública italiana, que muito repercutiu.

Naquele abril de 2021, o ex-presidente voltava definitivamente à cena —nacional e internacional— após o STF anular sua condenação e torná-lo novamente elegível.

O brasileiro disse que “acreditava que Battisti era inocente e não era”, referindo-se à admissão de culpa do italiano (em 2019) em quatro homicídios. “Desde o momento que ele confessou, é óbvio que devo admitir que errei”, afirmou Lula.

Na tentativa de conseguir algum benefício na prisão, uma das condições era admitir os crimes, algo que ele sempre negou nos longos anos de refúgio no México, na França e no Brasil.

O advogado que assumiu sua defesa, Davide Steccanella, especialista em defender envolvidos nos anos de chumbo italiano, insistia nesse ponto. Resistente à ideia, Battisti cedeu, mas sem falar sobre a participação de terceiros. A admissão ocorreu em março de 2019, dois meses após seu retorno ao país.

O grupo Proletários Armados pelo Comunismo, do qual fez parte, realizou quatro homicídios em menos de dois anos. Todos ocorreram no final dos anos 70, durante a temporada do terrorismo interno protagonizada por grupos extremistas de direita e de esquerda, e eles tiveram a participação direta ou indireta de Battisti.

Em dois homicídios, ele foi condenado como autor dos disparos: o do agente penitenciário Antonio Santoro, em junho de 1978, e do motorista de uma divisão da polícia de combate ao terrorismo, Andrea Campagna, em abril de 1979. Na execução do açougueiro Lino Sabbadin, foi condenado por dar cobertura; na do joalheiro Pierluigi Torregiani, como coidealizador.

Ele pediu desculpas aos familiares das vítimas e reconheceu que a luta armada na Itália foi um movimento “desastroso” que quebrou a revolução cultural dos jovens de 1968.

E ressaltou que nas execuções de Torregiani e Sabadin foi apontado por colegas como “decisivo apoiador” por estar à época fora da Itália, uma forma de os ex-membros do PAC aliviarem a responsabilidade de quem estava preso. Nas cartas, disse não ter responsabilidade pelos crimes —apesar de ter assumido responsabilidade na admissão perante o Ministério Público.

​Battisti atribui a atitude de Lula, assim como o abandono de antigos aliados à esquerda após assumir os crimes, ao clima de “campanha política” e à necessidade de fazer acenos à direita. Ele diz que Dilma Rousseff fez o mesmo durante o processo de impeachment, embora inexista registro de que isso tenha ocorrido.

“Aconselharam Lula a fazer isso se quisesse recuperar parte dos setores que votaram em Bolsonaro, ele não hesitou. Mesmo que para isso tivesse que mentir despudoradamente, dizendo que ele e Tarso Genro [ex-ministro da Justiça do governo Lula] não sabiam de nada”, disse.

“Fui recebido não porque fosse declarado inocente, mas exatamente para deixar ser exibido como troféu de guerrilheiro às forças de esquerda do Brasil. Para eles, não interessava um inocente perseguido, mas o combatente da liberdade. Lula e seu partido me apoiaram por isso. De toda forma, não se dá refúgio apenas aos inocentes.”

O ex-presidente Lula, por meio da assessoria, reafirmou o dito na entrevista: a partir da confissão dos crimes, o entendimento sobre seu refúgio passa a ser outro.

Battisti culpou o “extremismo idiota que impede o bom senso” e a “guinada desonesta” da esquerda como um dos fatores para a vitória de Bolsonaro.

“Se Lula e o PT não tivessem comido tudo, se não tivessem feito acordo com todo o lixo do centrão, o povo brasileiro não teria desistido para correr atrás de Bolsonaro.”

Cesare Battisti contou que ainda sonha em português e se mostrou preocupado com as notícias brasileiras.

Na correspondência, ele perguntou em alguns momentos sobre as recentes pesquisas eleitorais, as chances de Lula voltar novamente ao Palácio do Planalto e expressou temor com a possibilidade de atos de violência nas eleições por parte de milícias bolsonaristas, em especial ao ler sobre a proliferação de armas no Brasil e sobre o crescente apoio dos militares aos projetos antidemocráticos de Bolsonaro.

“Me dói ler e ouvir o que acontece nesse grande país. Por raiva, alguém pode dizer: ‘vocês votaram no fascista, agora aguentem’. Mas sabemos que isso é uma idiotice. No desespero, o povo torna-se manipulável e cego. Temo que para colocar fora do jogo essa canalha ocorrerá uma desgraça.”

VEJA TRECHO DE CARTA DE CESARE BATTISTI
Rossano, 29.04.2021

Senhor Luca Ferraz,

acabei (o meu português está indo emb ora) de lembrar de você, também daquela vez no Conjunto Nacional. Com certeza fiquei meio desconfiado, pois me sentia cercado pela imprensa agressiva.

É só para lhe dizer que aceito de ser entrevistado por você e acredito também que esse é o melhor momento – veja acontecimentos recentes. Há muita coisa para aclarecer, e outras a desmentir, inclusive algumas declarações falsas do Lula.

Não tem importância o veículo de imprensa, se você garante a ética profissional. Pela autorização, francamente eu não sei se é aqui ou ao ministério. Veja isso com Maurizio Nucci.

Cordialmente,
Cesare Battisti

Carta de Cesare Battisti ao repórter Lucas Ferraz

Folha