Bolsonarismo imita reação da ditadura a carta de 1977
Arapongas da ditadura militar tentaram desqualificar a primeira Carta aos Brasileiros, lançada em 1977 na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, mostram documentos dos órgãos de repressão política guardados no Arquivo Nacional. Um dos relatórios produzidos sobre o evento, uma “Apreciação Sumária” feita em 12 de agosto daquele ano por analistas do Serviço Nacional de Informações (SNI), ressalta que poucos docentes importantes da escola assinaram o manifesto.
No texto, os agentes atacam especialmente o professor Goffredo da Silva Telles, apontado como redator da carta. O documento dos juristas, sob o governo do general Ernesto Geisel, pediu o fim do regime autoritário pós-1964 e a redemocratização do País.
A memória desse episódio histórico tem sido evocada porque, no próximo dia 11 de agosto, aniversário da criação dos cursos jurídicos no Brasil, será lida na mesma faculdade uma nova carta. Desta vez, o objetivo será defender as urnas eletrônicas e o respeito ao resultado das eleições. Mais de 500 mil pessoas já a assinaram.
Em segundo lugar nas pesquisas eleitorais, o presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, tem atacado a votação digital e feito ameaças. Opositores do mandatário apontam nas falas discurso golpista, o que ele nega. O presidente também reagiu negativamente à nova versão do manifesto.
“Não precisamos de nenhuma cartinha”, ironizou Bolsonaro. Visivelmente incomodado com o movimento, que congregou juristas, empresários, sindicalistas e cidadãos comuns, também lançou, em tom de deboche, uma provocação em uma rede social. “Por meio desta, manifesto que sou a favor da democracia”, escreveu.
Quarenta e cinco anos antes, o relatório do SNI tentou mostrar o suposto isolamento dos signatários da primeira carta e desqualificar seus pedidos por democracia e volta do estado de direito.
“A leitura dessa ‘carta’, à primeira vista, em razão do grande alarde feito pela imprensa escrita e falada, deu a impressão de que se tratava de um ato oficial organizado pela direção daquela escola, em comemoração de mais um aniversário de sua fundação”, dizem os autores da apreciação. “Na verdade, o documento em apreço, de mera conotação política, não teve o apoio maciço, senão de minoria inexpressiva (conquanto ativa) da congregação da referida academia de direito. Com efeito, dos vinte e cinco professores titulares da Faculdade de Direito, apenas seis assinaram a ‘CARTA AOS BRASILEIROS’.”
“O Professor GOFFREDO DA SILVA TELLES, egresso da extinta AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA, transformou-se num cristão-novo do liberalismo político, mas não teve o apoio da maioria dos seus colegas que compõem a congregação da velha academia, que vêm se omitindo na análise e crítica do Movimento Revolucionário de 64″, diz o texto do SNI. Com programa fascista, a AIB fora extinta 40 anos antes da primeira Carta aos Brasileiros. A citação de Goffredo como liberal recém-convertido era um exagero proposital contra o mais conhecido ativista da carta.
A iniciativa
Um dos signatários da atual Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito e um dos articuladores da versão de 1977, o advogado e ex-ministro da Justiça José Carlos Dias conta que a ideia de fazer o manifesto pelo fim da ditadura surgiu em almoço com Almino Afonso, ex-ministro do Trabalho do presidente João Goulart, e Flavio Bierrenbach. Goffredo da Silva Telles fora professor de Dias na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Era muito respeitado.
“Resolvemos que era necessário fazer um documento para ser lido no pátio (da escola)”, relata Dias. “Escolhemos o professor Goffredo para ser o redator dessa carta.” Segundo o ex-ministro, Goffredo era “um dos maiores professores” da faculdade. Escreveu o texto, no qual os articuladores fizeram algumas modificações, antes da leitura. O ato reuniu 2 mil pessoas em protesto contra a ditadura.
Documentos de órgãos de repressão política guardados no Arquivo Nacional mostram que havia motivos para que os juristas pedissem o fim da ditadura. Há na documentação indícios de que os próprios articuladores do documento foram rastreados por espiões do regime militar.
O Encaminhamento 247/115 da Agência São Paulo do SNI, de 8 de agosto de 1977, por exemplo, encaminha cópia da Carta aos Brasileiros, horas antes da sua leitura no mesmo dia. O texto, diz o agente, estava sendo distribuído por Dias em seu escritório. Dois dias depois, a Informação N.º 248/30/77 da sucursal paulista do “Serviço” aponta Dias, Almino e Bierrenbach como colaboradores do manifesto.
Resolvemos que era necessário fazer um documento para ser lido no pátio (da escola). Escolhemos o professor Goffredo para ser o redator dessa carta
José Carlos Dias, um dos signatários da atual carta e articulador do texto de 1977
A “Apreciação Sumária” do SNI que os agentes usaram para atacar o manifesto também afirma que o diretor da Faculdade de Direito, em entrevista, negou ter proibido a leitura no Salão Nobre da instituição. Teria dito ainda que aquele seria um ato político “pessoal” (palavra grifada no relatório) do professor Goffredo. Lembra ainda que o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo não subscreveu o manifesto, por considerá-lo uma “iniciativa isolada”. O relatório afirma que políticos de “formação liberal”, como Severo Gomes e Abreu Sodré, também não assinaram o manifesto pela reconstitucionalização do País.
“Registre-se, finalmente, que os participantes à reunião da leitura da CARTA AOS BRASILEIROS, quase sem exceção, eram elementos liberais e de esquerda, muito conhecidos por seu pensamento antirrevolucionário”, conclui o relatório, que implicitamente reconhece a importância do manifesto. “Todavia, o ato representou mais um significativo desdobramento da campanha contestatória ao regime vigente ora em desenvolvimento no País.”
Vigilância
A participação na Carta aos Brasileiros pode ter custado a Goffredo mais vigilância dos órgãos de repressão. Em outro documento, o Informe 7802/31, de 11 de novembro de 1977, da Agência Central do SNI e classificado como confidencial, o nome do jurista é o segundo citado ao descrever um ato em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura no DOI-Codi de São Paulo em 1975. A manifestação ocorreu na sede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e reuniu cerca de 150 pessoas.
Na mesa que dirigiu a homenagem, estavam Goffredo e o representante da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o advogado José Gregori, a viúva Clarice Herzog, o jornalista Audálio Dantas, que então presidia o sindicato, e dois outros integrantes da diretoria.
Na verdade, o documento em apreço, de mera conotação política, não teve o apoio maciço, senão de minoria inexpressiva (conquanto ativa) da congregação da referida academia de direito
Relatório do Serviço Nacional de Informações
Goffredo permaneceu em silêncio durante o ato. Apenas Gregori discursou, dizendo que o Brasil era “uma República, mas que uma república deve ser governada pelas leis e não pela vontade intolerante dos governantes, marca das monarquias”. O advogado afirmou que o País, apesar de ter uma Constituição que garantia a liberdade de imprensa, tinha um governo que instituíra a censura prévia, o que tornava a legislação existente letra morta.
A Agência Central do SNI viu a homenagem ao jornalista assassinado assim como a presença de Goffredo da Silva Telles no ato, como “propaganda adversa” que o regime não poderia admitir. Ironicamente, vários documentos da repressão sobre a carta traziam no pé um carimbo que dizia: “A Revolução de 64 é irreversível e consolidará a democracia no Brasil”.
Estadão