Doutora pela USP defende “liberdade de expressão” de Bolsonaro

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Foto: Douglas Magno/Folhapress

Ainda assim, ela não as vê como constituintes de discurso de ódio —uma expressão, afirma, que abrange bem menos declarações do que se possa pensar. Isso se aplica inclusive, em sua visão, à frase de Bolsonaro sobre “fuzilar a petralhada”.

A declaração tem sido lembrada na esteira do assassinato do militante do PT Marcelo Arruda, morto por um homem que invadiu sua festa aos gritos, segundo testemunhas, de palavras de ordem contra os petistas e a favor de Bolsonaro.

Doutora em direito pela USP com tese justamente sobre discurso de ódio, Gross coordena a Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (Pled) da FGV Direito SP.

Em entrevista por email à Folha, ela fala sobre o que constitui esse tipo de discurso, explica como vê as consequências das falas de Bolsonaro sobre a realidade brasileira e conta o que se sabe sobre a eficácia de se proibir determinados discursos para diminuir a prevalência de certas posturas políticas.


O que se define como discurso de ódio? Não existe, na legislação brasileira, o conceito de discurso de ódio para fins de restrição de liberdade de expressão. Ou seja, a lei brasileira não proíbe discurso com base nesse conceito. Mas, se o intuito da pergunta é definir um tipo de discurso que a lei e o Judiciário proíbem no Brasil, e que se popularizou pelo termo discurso de ódio, penso que há duas categorias técnicas no direito brasileiro que traduzem as preocupações que temos quando debatemos discurso de ódio.

A primeira é a honra coletiva de grupos, própria do direito civil e por vezes reconhecida pelo Judiciário, que constitui respeito à reputação e à autoestima de grupos, em contraste com a honra de indivíduos. A outra categoria, essa do direito penal, é o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” do artigo 20 da lei 7.716, que é conhecida como Lei do Racismo.

Que tipo de discurso é limitado por essas categorias? Tanto uma quanto outra categoria buscam restringir discurso marcado por três características. A primeira é que o discurso é dirigido a grupos definidos por traço identitário, e não a pessoas individuais. Normalmente, os grupos protegidos são aqueles considerados vulneráveis. Assim, discurso de ódio se dirige ao grupo de pessoas negras, ou de mulheres, por exemplo, e não a uma mulher ou pessoa negra específica.

A segunda característica é que o discurso possui conteúdo discriminatório: a mensagem é de negar que pessoas de certos grupos são seres humanos de igual valor, ou de negar a elas os mesmos direitos das demais pessoas. E a terceira característica é que esses discursos são proferidos publicamente, e não em conversas privadas. Acho importante fazer essa delimitação porque aponta um grupo de discursos que é muito mais restrito do que o uso comum dos termos discurso e ódio poderia designar.

Poderia dar um exemplo? Por exemplo, se eu posto no Facebook que “Eu odeio o presidente da República!”, seria possível dizer que eu expresso ódio ao presidente e que isso, portanto, segundo a linguagem comum, poderia ser chamado de discurso de ódio. Mas esse tipo de expressão é legítimo.

Quem escolhe a vida pública sabe que se deparar com manifestação pública de desprezo acerca de si faz parte do ônus dessa forma de vida. Esse tipo de discurso expressa ódio, mas não é proibido pelo direito brasileiro e não é bem capturado, a meu ver, pelo termo discurso de ódio quando o que se quer com esse termo é justamente compreender o tipo de discurso que é muitas vezes considerado proibido pelo direito brasileiro.

Falar em “fuzilar a petralhada” ou dizer que “povo armado jamais será escravizado” é fazer discurso de ódio? E proferir discurso geral em defesa do armamentismo? É importante colocar essas falas em contexto porque não tem como saber a intenção de uma fala apenas pelo conjunto das palavras ditas, é o contexto que fornece a condição para construir o sentido da fala. E tanto o sentido quanto o impacto provável do discurso são importantes para definir sua legalidade. Penso que essas frases foram selecionadas porque foram ditas pelo presidente em algumas ocasiões. Analisar as ocasiões é importante para entender o sentido das falas.

O presidente, se não me engano, expressou a frase “povo armado jamais será escravizado” e outras de conteúdo semelhante em diversas ocasiões: post em rede social, discursos em ocasiões públicas e em reunião ministerial. É difícil imaginar essa frase em um contexto em que ela constituiria discurso de ódio porque é difícil pensá-la como um discurso com intenção de discriminar um grupo definido por traço identitário.

Não estou dizendo que não poderia acontecer. Mas, pelos termos da frase, é difícil imaginá-la dessa forma. Isso não encerra a questão sobre se esse discurso deve ou não ser proibido em algum contexto. Indica apenas que o conjunto de razões normalmente mobilizadas para proibir discurso de ódio não se aplicaria ao caso.

Mas então esse discurso é permitido? Mais uma vez, a resposta depende do contexto. Em alguns dos contextos do meu conhecimento em que o presidente afirmou essa frase, ele pareceu ter como intenção defender o ponto de vista de que o Estado deve garantir o direito individual de possuir armas porque esse direito é importante para evitar uma ditadura. Se esse é o sentido do discurso, não penso que deva ser proibido porque afirma uma posição política. Eu discordo dessa posição com veemência.

Penso que é uma posição ignorante, irresponsável, que não acompanha os melhores estudos acerca das consequências nefastas de aumentar a circulação de armas entre civis. Mas é uma posição política que as pessoas em geral, e também o presidente, têm direito de defender.

Para que uma fala configure incitação ao crime, é preciso que a linguagem usada seja uma que no contexto signifique incentivo ou instigação para prática de crime e que haja contexto de probabilidade de que a fala irá levar à prática de crime. O contexto, portanto, importa sempre.

Poderíamos imaginar um contexto em que há aumento importante de crimes com armas de fogo e que, nesse contexto, o discurso de apoio ao direito de ter armas passe a ser compreendido como apoio à prática desses crimes.

Nesse caso, o sentido de expressar o mesmo conjunto de palavras se modifica. Se esse é o sentido com que de forma geral as pessoas passam a usar e compreender o discurso, por uma questão de contexto, de conjuntura, então ele poderia ser considerado incitação ao crime e, dessa forma, proibido.

E a fala sobre “fuzilar a petralhada”? Uma interpretação poderia configurá-la como discurso de ódio se, pelo contexto, a intenção fosse a de negar direitos a pessoas pertencentes a um grupo identificado pelas suas convicções políticas. A identidade política não é uma categoria em torno da qual os direitos de não discriminação são tradicionalmente pensados. Mas não vejo por que, em certos contextos, ela não poderia ser também considerada. De qualquer forma, penso que a discussão está sendo levantada porque a frase foi dita pelo presidente em campanha política em 2018.

Naquele contexto, penso que havia razões para interpretar o discurso como a afirmação da aposta na vitória de Bolsonaro sobre o PT nas eleições. Há razões para entender que a fala não foi literal. É uma fala grosseira, tosca, ignorante. É triste que tenhamos como presidente uma pessoa que se coloque no debate político de forma tão ríspida e violenta. Mas não me parece que naquele contexto o presidente estava afirmando que os militantes do PT não deveriam ter direitos protegidos de forma igualitária. Assim, não me parece que, naquele contexto, o discurso configura discurso de ódio.

Também não me parece que, naquele contexto, o discurso significava incitação ao crime justamente porque o sentido não era o de defender a prática de crimes contra militantes do PT. Isso não significa que, em um outro cenário social e político, em outro contexto, uma frase como essa não poderia significar incitação ao crime.

É uma fala grosseira, tosca, ignorante. É triste que tenhamos como presidente uma pessoa que se coloque no debate político de forma tão ríspida e violenta. Mas não me parece que naquele contexto o presidente estava afirmando que os militantes do PT não deveriam ter direitos protegidos de forma igualitária

Discursos como esse devem poder circular livremente ou não? As respostas que dei às questões anteriores ajudam a compreender a resposta que eu vou dar a essa questão também. Penso que a circulação da tese abstrata de defesa do armamentismo pode circular livremente, desde que ela signifique, no contexto, justamente a defesa abstrata de um direito às armas.

No entanto, um mesmo conjunto de palavras pode significar coisas diferentes a depender do contexto. E pode haver um contexto no qual a defesa do armamentismo signifique endosso e convocação para que as pessoas cometam crimes de ocorrência provável. Nesses casos, o discurso não pode circular.

O que pensa sobre as consequências de liberar a defesa abstrata do armamentismo em determinados contextos? A defesa da liberdade de expressar apoio às armas não significa ignorar que, circulando, esse discurso pode vir a ter endosso político, o que leva a consequências muito ruins. Penso, no entanto, que prezamos pela democracia porque ela é o regime que respeita o valor de cada pessoa individual. E é esse respeito que exige que cada pessoa tenha a liberdade de expressar as suas convicções políticas.

Outro ponto é o de que há séria discussão sobre os efeitos de proibição de discurso. Estudos sociológicos apontam dúvidas sobre se é a circulação de mensagens de conteúdo violente ou discriminatório, por exemplo, a causa central do aumento de convicções e atitudes violentes e discriminatórias ou se há outros fatores sociais mais importantes que explicam o aumento dessas convicções e atitudes.

Também há sérias dúvidas sobre se proibir discurso diminui o endosso de certas teses. Não há consenso científico sobre se proibir discurso é meio eficaz para diminuir certas posturas políticas, ou se a proibição não pode acabar tendo o efeito rebote, de aumentar o ressentimento daqueles que se veem silenciados.

há sérias dúvidas sobre se proibir discurso diminui o endosso de certas teses. Não há consenso científico sobre se proibir discurso é meio eficaz para diminuir certas posturas políticas, ou se a proibição não pode acabar tendo o efeito rebote, de aumentar o ressentimento daqueles que se veem silenciados

Por fim, eu tenho convicção de que devemos lutar com toda nossa energia contra o aumento da circulação de armas no Brasil. Os melhores estudos sobre o tema mostram como o aumento da circulação de armas provoca aumento da violência civil. Infelizmente, temos um presidente que defende ideias horrorosas sobre política de armas. A liberdade de expressão dele permite que ele defenda essa política. Devemos contradizê-lo sempre, rechaçar publicamente suas ideias.

Infelizmente, temos um presidente que defende ideias horrorosas sobre política de armas. A liberdade de expressão dele permite que ele defenda essa política. Devemos contradizê-lo sempre, rechaçar publicamente suas ideias

Coisa diferente é incitar os brasileiros à violência. Ele não pode de forma alguma fazer isso. Não penso que seja possível arbitrar de antemão quais conjuntos de palavras significam incitação porque isso depende do contexto. As autoridades públicas, incluindo o presidente, devem avaliar com cuidado o que dizem dado o contexto difícil e violento no qual se encontra a política e a sociedade brasileira.

Eles não podem convocar ou incentivar as pessoas à violência. E, a meu ver, a responsabilidade do cargo inclui agir para diminuir a tensão e a raiva que hoje caracterizam a política brasileira.

É muito importante que as autoridades públicas, e muito especialmente o presidente, não apenas não estimulem a violência, mas insistam expressamente, de forma clara e inequívoca, que a violência não é meio legítimo de disputa política.

Folha