Mesmo destroçada, direita vence esquerda nas redes

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Gabriela Biló /Folhapress

Nesta terceira década do século 21, duas revoluções ainda em curso estão alterando em grande velocidade as nossas vidas em todos seus aspectos. Governos, empresas, negócios, ensino, saúde, ciência, política, consumo cultural, indústria criativa, informação, formas de convivência etc. têm sido intensamente afetados pela dupla revolução representada pela transformação digital e pela consequente datificação de quase tudo.

A transformação digital acelerou o passo durante a pandemia. Da compra no verdureiro até as chamadas de vídeo entre avós e netos distantes, incluindo o trabalho, o ensino e o amor remotos, tudo virou digital. O que não tinha ainda sido digitalizado finalmente o foi.

Já “datificação” é o nome que se dá à incessante produção e acúmulo de dados, gerados voluntária ou involuntariamente, que decorrem de uma vida inteiramente digital e frequentemente online e que podem ser coletados, tratados e transformados em informações.

O século 21 são muitas coisas, mas inegavelmente tudo o que ele é gira ao redor da inteligência computacional baseada em análise de grandes bases de dados, da transformação digital e da comunicação online, isto é, do uso social das tecnologias digitais para gerar interação social e integração entre as pessoas.

Nesse quadro, uma pergunta emerge: governos analógicos fazem sentido em uma sociedade digital? A rigor, essa é uma pergunta do final do século 20 e a resposta foi uma corrida para que governos e a própria democracia acompanhassem as alterações que atingiam tudo o mais. Mas, então, veio o retrocesso.

A partir de 2016, todos os avanços da nova comunicação digital foram convertidos em armas pela extrema direita que irrompe. As promessas de mais democracia por meio da tecnologia são ofuscadas pela rápida implementação de iniciativas que entregavam mais autoritarismo, populismo e manipulação em escala maciça por meios digitais.

Analítica de big data, irresistíveis campanhas políticas microdirecionadas (“microtargeting”), uso de comportamentos automatizados (bots) para forjar climas de opinião, fake news aos montes para satanizar adversários e inflamar seguidores, teorias da conspiração para instilar o pânico moral e levar os mobilizados a cometer loucuras. Nesse ambiente de política digital suja e comunicação política polarizada, eleições foram perdidas para populistas radicais e a pandemia foi transformada em arma da guerra política, com as consequências que todos conhecemos.

Sei que este é o momento da narrativa em que, vencidos os dois maiores campeões da extrema direita mundial, Trump e Bolsonaro, eu deveria falar das flores: o retorno das nossas esperanças de que, na dialética das revoluções digitais, como naquela do Iluminismo, o lado pró-democracia retome o passo.

O fato é que não sei. A nova velha extrema direita é uma criatura digital, nascida nas quebradas online e nos becos dos big data; a velha nova esquerda que chegou ao poder é analógica, entende o movimento das massas ainda segundo modelos do início do século 20, assimilou as estratégias de comunicação política baseadas, se tanto, em televisão e telejornalismo, é um ser de outra civilização.

No intensivão dessas três semanas de governo, o saldo não é bom. Se, em algum momento do futuro alguém contar que, uma semana depois de tomar posse, um governo sofreu uma tentativa de golpe de Estado que não foi capaz de prever em detalhe nem evitar com planejamento, apesar da enorme quantidade de informações digitais produzidas, sem segredo, por milhares de terroristas, quem acreditaria em tal coisa?

Além disso, me impressiona a ausência de estratégias de comunicação do governo para enfrentar o momento seguinte. Os golpistas estão impondo a narrativa que lhes convém com essa história de campos de concentração, presos políticos, infiltrados, velhinhas em privação, ditadura de toga, ausência do devido processo. E o governo? Silêncio. Há enorme acúmulo de conhecimento sobre comunicação pública digital e gestão de crise, mas, aparentemente, o memorando não chegou à Secom ou a quem de direito.

Com Bolsonaro no poder, era natural que não se enfrentassem fake news e teorias do complô na disputa pelos enquadramentos, pela agenda e pelas histórias, pois, afinal, a propaganda suja digital era parte essencial da estratégia de comunicação do próprio governo.

O espantoso é ver que o governo do PT, que foi por quase uma década a vítima preferencial dessa estratégia, não parece saber lidar com isso para vir em socorro da República, que ainda caminha perigosamente sobre gelo fino. O problema não é simplesmente o governo ser analógico, é que não parece ter sequer uma estratégia de comunicação pública digital durante uma crise desse tamanho.

Saiu o governo que fazia, distribuía e se beneficiava de fake news, mas ainda não tomou posse o governo capaz de entrar na luta digital de forma eficiente a favor da democracia. Como naquele ditado em língua inglesa, o governo trouxe uma faca para uma briga com armas de fogo.

Folha