MP quer ganhar 11 mil a mais sem expediente

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Criado sob a alegação de excesso de trabalho, um penduricalho do Ministério Público vai beneficiar com até R$ 11 mil por mês procuradores em férias, licença ou recesso e aqueles afastados para atuar em associações de classe. Similares a sindicatos, as entidades defendem interesses particulares dos filiados. Na prática, mesmo sem dar expediente, integrantes dessas carreiras que já têm 60 dias de férias por ano poderão ganhar adicional de 33% e receber acima do teto constitucional – hoje, o vencimento de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) é de R$ 39,3 mil.

Em julho do ano passado, como mostrou o Estadão, o procurador-geral da República e presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Augusto Aras, havia publicado uma recomendação para que o penduricalho já existente para juízes fosse estendido a todo o MP. Na época, o conselho afirmou que se tratava de “uma orientação”. Agora, o órgão define regras para a concessão do benefício por meio de uma resolução aprovada em dezembro e publicada na sexta-feira, 27.

Assim como a recomendação, o novo texto não limita o penduricalho por “acúmulo de acervo processual, procedimental ou administrativo” ao chamado abate-teto. Presente nas regras da magistratura, a trava chegou a constar de uma minuta de recomendação do CNMP, mas foi retirada na versão final do texto, como também revelou o Estadão. Além disso, no caso dos juízes, o bônus é pago àqueles que acumulam varas e processos nas férias de colegas e o direito foi obtido por meio de lei aprovada no Congresso.

As regras mais recentes do CNMP, que visam espelhar o penduricalho da magistratura, valem para o Ministério Público da União, que abrange o Ministério Público Federal; do Trabalho; Militar; e do Distrito Federal e dos Territórios. Caberá ao conselho superior de cada ramo, em 90 dias, definir a quantidade de processos que dará direito ao benefício, o que, para ministros e magistrados que já atuaram em conselhos ouvidos sob reserva, abre margem para o pagamento de forma ampla.

Na época da recomendação, o Estadão mostrou, por exemplo, que o Ministério Público do Paraná já havia estabelecido que promotores com mais de 200 ações criminais tinham o direito a um extra. Segundo os dados mais recentes, de 2021, o MPU tem 2.319 integrantes – dos quais 1.144, no MPF; 760, no MPT; 48, no MPM; e 367, no MPDFT. Um procurador da República tem salário de R$ 33,7 mil. Questionado, o CNMP não informou estimativas de gastos com o novo adicional. Esse mesmo benefício concedido a juízes é alvo de apuração no Tribunal de Contas da União (TCU) justamente por ter se tornado, no dia a dia, universal.

As novas normas do CNMP preveem, ainda, um dia de licença a cada três dias de trabalho ou o pagamento do penduricalho. “Observada a disponibilidade financeira e orçamentária, os ramos do Ministério Público da União, por ato do respectivo procurador-geral, poderão indenizar os dias de licença”, diz a resolução, o que, na visão de ministros e juízes que atuaram em conselhos, fará do pagamento uma prioridade.

A matéria versada na resolução recém-promulgada deveria, por sua importância e reflexos, ser editada expressamente em lei. (…) Quanto ao aspecto jurídico, sem dúvida, o ato é questionável

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito de Direito Constitucional da USP

Segundo o gerente de Inteligência Técnica do Centro de Liderança Pública (CLP), Daniel Duque, essa brecha terá impacto fiscal e o novo penduricalho chega em um momento delicado do País, além de se tratar de uma indenização, que fica fora do teto, não uma remuneração, sujeita ao teto e a impostos. “Vai haver aumento de gastos de uma carreira que já é a que tem o maior nível de gasto proporcional em relação ao resto do mundo. Isso é um problema, tendo em vista principalmente que há um desafio do governo para solucionar as contas públicas”, disse. Quando a recomendação veio a público, o diretor-presidente do CLP, Tadeu Barros, afirmou se tratar de um estímulo à “incompetência”.

Lista
A lista prévia dos beneficiários é longa. Pelo texto do CNMP, já terão direito ao benefício: presidente e membros de conselhos superiores; corregedor-geral; secretário-geral ou diretor-geral; chefes de gabinete de procuradores-gerais; coordenador-geral, coordenador nacional, assessor-chefe, além de secretários, diretores ou coordenadores titulares de órgãos administrativos das Procuradorias-Gerais. Quem participar de comissões – como as de combate ao trabalho escravo ou trabalho infantil –, grupos de trabalho e até grupos de estudo também terá “acúmulo de processo”.

De acordo com a resolução do CNMP, também será beneficiado quem exercer a chamada “função relevante singular”. É neste caso que entram os procuradores afastados para atuar nas associações de classe. Por lei, os membros do MPU com “mandatos classistas” tiram licença remunerada e até três integrantes por entidade são liberados de suas funções. Agora, o valor extra por excesso de trabalho poderá ser recebido enquanto um procurador atua em favor dos colegas, longe do cotidiano das demandas judiciais. Hoje, associações como ANPR (MPF), ANPT (MPT) e ANMPM (MPM) representam a categoria.

Esses artifícios todos costumam partir de uma operação marota de embutir na remuneração benefícios indenizatórios. Indenização não conta no teto nem paga tributo. O problema é que a maioria das coisas que se coloca na categoria de indenização simplesmente não poderia estar

Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP

Sem paralelo na iniciativa privada

Na iniciativa privada, o empregado regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tem 30 dias de férias, recebe hora extra ou banco de horas e, ao atuar em comissão interna de prevenção de acidentes (Cipa) ou sindicato, não ganha um extra, mas estabilidade de um ano após o fim do mandato. Ao cobrir férias de um chefe, o trabalhador tem direito a receber salário igual ao do superior. Um magistrado que atuou em conselho superior disse que a regra para os procuradores com mandato classista é uma forma de incluí-los na “festa”.

“Isso não tem correspondência legal com os trabalhadores da iniciativa privada. Se não houver previsão legal em legislação específica, a meu ver tal resolução, neste ponto, é ilegal”, disse o professor de Direito do Trabalho da FMU Ricardo Calcini, sobre os critérios para procuradores que representam a carreira em associações. “Indenizar acaba por criar uma verba indenizatória que, na prática, afronta o Fisco, por não ter recolhimento de Contribuição Previdenciária e de Imposto de Renda”, afirmou.

Lei

O aumento das remunerações sem o aval do Legislativo é criticado pelos especialistas em direito. “A matéria versada na resolução recém-promulgada deveria, por sua importância e reflexos, ser editada expressamente em lei”, afirmou Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito de Direito Constitucional da USP. “Quanto ao aspecto jurídico, sem dúvida, o ato é questionável”, disse. Segundo ele, o Congresso pode suspender a medida.

Já para Conrado Hübner Mendes, também professor de Direito Constitucional da USP, as carreiras jurídicas usam de mecanismos para romper o teto. “Esses artifícios todos costumam partir de uma operação marota de embutir na remuneração benefícios indenizatórios. Indenização não conta no teto nem paga tributo. O problema é que a maioria das coisas que se coloca na categoria de indenização simplesmente não poderia estar”, afirmou.

O teto do funcionalismo subirá em breve, o que leva ao chamado efeito cascata. Em dezembro, o Congresso aprovou o reajuste escalonado dos salários dos ministros do STF. A partir de abril, integrantes da Corte ganharão R$ 41,6 mil. O vencimento chegará a R$ 46,4 mil, em 2025. Procurados, CNMP, ANPR, ANPT e ANMP não responderam até a publicação desta reportagem.

Estadão