Opositor de Maduro ataca Lula por se aproximar da Venezuela

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Foto: FEDERICO PARRA/AFP

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou a cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), na Argentina, para selar a retomada das relações entre o Brasil e o regime de Nicolás Maduro. Em Buenos Aires, Lula classificou como “abominável” o reconhecimento do líder opositor Juan Guaidó como presidente interino por parte da comunidade internacional, em 2019.

Sucessor de Hugo Chávez, Maduro detém o poder de fato sobre a Venezuela, mas é considerado ilegítimo por mais de 50 países em razão de fraudes eleitorais denunciadas no pleito que o reelegeu, em 2018. Foi com base no suporte destes governos que Guaidó, então dirigente da Assembleia Nacional venezuelana, se autoproclamou como líder, após a Casa declarar a vacância da presidência da República.

O retorno de Lula ao Palácio do Planalto completa uma lista de reveses para a oposição venezuelana, com a ascensão de governos de esquerda na América do Sul e a retomada do diálogo entre os Estados Unidos e o regime de Maduro.

Em entrevista exclusiva à equipe da coluna a partir de Caracas, Guaidó reagiu às afirmações de Lula. Disse que o presidente brasileiro presta “um grande desserviço à democracia” ao não se contrapor a Maduro e às violações de direitos humanos no país. Mas desconversa quanto a seu apoio à reeleição de Bolsonaro, manifestado em um vídeo na véspera do primeiro turno, e sobre os atentados do 8 de janeiro:

“Se o ataque ao Parlamento brasileiro é deplorável, o ataque ao Congresso venezuelano por parte de Maduro também é deplorável”.

Desde o último dia 5, Guaidó não tem mais o título de “presidente interino”. Após ver minguar a ofensiva para frear a escalada autoritária e impor uma transição de poder, a oposição venezuelana rachou, dissolveu o governo paralelo e passou a concentrar esforços na defesa de eleições diretas em 2024.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

O presidente Lula, ao lado de Alberto Fernández, classificou seu reconhecimento como presidente interino da Venezuela por parte da comunidade internacional como “abominável”. De que maneira o reposicionamento do Brasil muda os cenários para uma eventual transição de poder em seu país?

Sem dúvidas o Brasil é uma potência no continente e no mundo. A posição do país a respeito da democracia é muito importante, não em relação a mim ou ao Maduro. Há uma sistemática violação de direitos humanos na Venezuela denunciadas no Tribunal Penal Internacional, nos informes da comissão criada por Michelle Bachelet [ex-presidente do Chile e Alta Comissária da ONU para direitos humanos], além de relatórios independentes produzidos no próprio país.

Falar de democracia é falar de eleições livres. Se Lula quer defender a autodeterminação dos povos, é preciso tocar neste assunto. Me atacar para pôr panos quentes ou não mencionar o assunto não ajuda a democracia e nem o povo venezuelano. Lamentavelmente, esta ditadura impediu o crescimento econômico e provocou a crise migratória mais grave do planeta. O presidente Lula presta um grande desserviço à democracia ao não se posicionar frontalmente em defesa dos direitos humanos e, por consequência, da democracia.

Na resposta a Lula no Twitter, o senhor diz que “abominável é que professores ganhem 6 dólares por mês porque não há democracia na Venezuela e que saquearam o país que tem as maiores reservas de petróleo do mundo, saque associado à Odebrecht”. Essa é a estratégia da oposição na Venezuela, fazer enfrentamento público à política externa de Lula? Ou é a sua posição particular?

Quem confrontou a política interna da Venezuela [ao usar a palavra abominável] foi Lula. E não só no caso venezuelano. O reconhecimento à nossa constituição [à vacância da presidência em 2019 e consequente autoproclamação de Guaidó] foi feito por quase 60 países do mundo, incluindo o Brasil naquela ocasião, os EUA, o Reino Unido, França, Alemanha, Equador e muitos outros. Não é um ataque somente a Juan Guaidó, mas à democracia.

Enfrentaremos qualquer posição que seja contra a democracia e invisibilize as vítimas de violações de direitos humanos, imigrantes e refugiados. Um presidente com 24 dias de governo que minimiza ou não se pronuncia sobre a crise humanitária mais severa já vista no continente, pior do que em nações que vivem guerras, como a Síria e a Ucrânia, não entende a Venezuela. Não é à toa que Maduro é acusado de crimes contra a humanidade. Mas não há a intenção de polarizar com quem quer que seja, e sim de defender o sistema democrático e a possibilidade de solucionar a crise venezuelana por meio de eleições presidenciais livres.

Na véspera da eleição brasileira, Bolsonaro compartilhou um vídeo seu manifestando apoio à sua reeleição. O senhor acredita que as afirmações de Lula tenham a ver com isso? Mesmo após os ataques do 8 de janeiro e os questionamentos à lisura das eleições, o senhor mantém o endosso a Bolsonaro?

Um ataque ao Congresso é deplorável em qualquer país. Nos últimos sete anos isso aconteceu no mínimo três vezes no meu país, com muitíssima violência, incluindo deputados feridos. Entendo que isso não ocorreu no Brasil. No caso da Venezuela, houve uma invasão militar ao Palácio Legislativo Federal. Para nós, a democracia é a independência entre poderes, com pesos e contrapesos e o respeito às instituições. Mas se o ataque ao Parlamento brasileiro é deplorável, o ataque ao Congresso venezuelano por parte de Maduro também é deplorável.

Por outro lado, prefiro pensar que um político tão experiente como Lula, eleito novamente presidente de um país como o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes e uma das economias mais importantes do planeta, não se deixaria influenciar por isso [seu vídeo]. Prefiro acreditar que esse comentário não tenha sido [o pagamento de] uma fatura política.

Nos últimos quatro anos, a ascensão de lideranças de esquerda na América do Sul reabilitou Maduro: Fernández na Argentina, Gustavo Petro na Colômbia; Pedro Castillo no Peru e, agora, Lula. Gabriel Boric, no Chile, é crítico de Maduro, mas reconhece sua autoridade. Isso significa que o apoio ao regime não causou grandes prejuízos políticos para estes líderes. Por que o senhor acha que isso aconteceu?

Isso é relativo. Muita coisa mudou. O que Petro disse na campanha sobre Maduro é muito diferente do que vemos hoje. A última declaração dele na disputa da Colômbia sobre o assunto foi que Maduro não representava a esquerda, mas sim “a política da morte”. Não se pode se aproximar de um ditador nem por ideologia nem por interesse econômico, e creio que o mundo atual demonstra isso. Muitos tentaram se aproximar de Putin na tentativa de contê-lo e isso deu muito errado. Não só para a Ucrânia e a Europa, mas para o mundo inteiro, com o risco de desabastecimento de alimentos.

O mesmo se aplica a Maduro. É um erro abordar o conflito venezuelano como se fosse uma disputa entre esquerda e direita.

Por quê?

É um conflito de base terrorista, inclusive, contra os direitos básicos. Trata-se da democracia contra a ditadura. São os direitos humanos, que não temos aqui, contra os crimes em curso na Venezuela. Quando Lula foi questionado sobre Venezuela e Maduro, ele deveria ter se posicionado sobre a necessidade de justiça e eleições livres. Ao invés disso, se utilizou de um recurso retórico para não firmar posição sobre uma ditadura, e isso é [o mesmo que] defendê-la. É um erro que qualquer presidente latino-americano se aproxime de Maduro por razões ideológicas. É um líder que subjuga os mais pobres e vulneráveis.

Por outro lado, o senhor perdeu o apoio da oposição, que no fim do ano passado decidiu dissolver seu governo interino. Por que isso ocorreu? As duas coisas estão relacionadas?

Fui escolhido por consenso durante quatro anos pela maioria parlamentar [de oposição]. Como qualquer maioria, as coisas podem mudar com o tempo. Hoje estamos convocando primárias justamente para legitimar a liderança opositora pela base, junto aos venezuelanos, para que não haja apenas acordos entre cúpulas partidárias. Assim, os venezuelanos escolherão e legitimarão a liderança política. Desta vez, a maioria parlamentar decidiu não ampliar a presidência interina e eu, como democrata, respeitei essa decisão.

Essa decisão coincidiu com a eleição de Lula no Brasil, o maior revés regional para a oposição desde a derrota de Trump e a vitória de Petro na Colômbia. Há alguma relação entre esses eventos?

Sob uma perspectiva ideológica, talvez os analistas tenham razão, mas insisto que o problema na Venezuela não é de esquerda ou de direita.

Lula tem defendido o diálogo como solução para a Venezuela através de um pilar histórico da diplomacia brasileira, a autodeterminação dos povos. Quais as chances de se chegar a alguma saída através do diálogo e da mediação com o auxílio dos EUA e da União Europeia?

Procuramos um facilitador para essa mediação, que é a Noruega, e países que acompanharam este processo como os Estados Unidos e a União Europeia, e buscamos especificamente um acordo político para viabilizar eleições livres e justas que, por sinal, não ocorrem na Venezuela desde 2018.

A ideia do diálogo não é uma invenção de Lula. Se ele quiser reforçar a possibilidade de solução, há mecanismos como as mesas de negociações [entre opositores e o regime] que ocorrem no México. Vamos insistir para que Lula apoie este processo. Se ele é tão próximo de Maduro, que peça ou exija que o regime volte à mesa de negociações. É Maduro quem evita a possibilidade de um acordo que, em última instância, demanda uma data para as eleições que deveriam ocorrer em 2024.

Como encarou a decisão abrupta de Maduro desistir de viajar a Buenos Aires para a cúpula da Celac? No início do mês, ele também não conseguiu viajar a Brasília para a posse de Lula.

Honestamente, já esperávamos. Maduro tem muito medo, apesar de se fazer parecer forte, como fazem os ditadores. Ele está aprofundando a censura e a violação de direitos humanos. Cem rádios foram fechadas no ano passado. Dessa vez ele justificou com um suposto plano [“da direita neofascista”, em suas palavras], mas foi apenas uma desculpa por não se sentir totalmente seguro em outro país. Agora, veja, muito foi investido na tentativa de limpar sua imagem. Imagino o custo político para os presidentes que convidaram alguém tão incômodo como Maduro que, por fim, não apareceu.

Lula se encontrará com Biden nos Estados Unidos no início de fevereiro. Biden, aliás, retomou o diálogo com o regime de Maduro em função da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Há alguma expectativa de que a Venezuela entre na agenda?

Esperamos que a discussão contemple a possibilidade de retomar um acordo de negociação no México sobre a realização de eleições presidenciais. E também que a conversa trate precisamente da possibilidade de um acordo por melhores condições para uma eleição livre, a libertação de presos políticos e o cuidado com a quantidade maciça de imigrantes e refugiados que, inclusive, continuam chegando ao Brasil.

A oposição venezuelana avalia que há possibilidade de Maduro, de 60 anos, postular mais um mandato no ano que vem?

Essa é uma decisão do partido do regime, o PSUV. Maduro pode ser facilmente derrotado eleitoralmente com uma oposição unificada e uma eleição competitiva. Gostaríamos que não houvesse reeleição na Venezuela para garantir a alternância de poder e evitar desvios autoritários. É uma tentação autoritária nos países americanos que ainda vivem uma fragilidade institucional.

O senhor é candidato à presidência da Venezuela?

Meu “candidato” atualmente é a união dos venezuelanos. É isso que significa, no curto prazo, a convocação de primárias para escolher um único candidato e legitimá-lo junto à base popular, com venezuelanos dentro e fora do país. Logo faremos sinalizações à população e à comunidade internacional a respeito desse tema.

O Globo