Escândalo da PM do governo Tarcísio está crescendo

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O coronel Rui César Melo, então comandante-geral da PM,durante o enterro dos soldados Paulo Cesar Bueno da Silva e Douglas Daltron Lima, no mausoléu da corporação, no cemitério do Araçá. Foto: Kathia Tamanaha/AE

A Polícia Militar é uma instituição que remonta à antiga Força Pública, criada há quase 200 anos. Conta com um corpo de oficiais dedicado à carreira que tem orgulho de o Estado de São Paulo nunca ter sido obrigado a pedir ajuda às Forças Armadas para manter a ordem por meio de uma Operação de Garantia da Lei e Ordem (GLO). Também se orgulha de que seus homens nunca pensaram em criar milícias para lucrar com a falta de segurança da população, impondo aos mais humildes a taxa de proteção dos mafiosos.

O preço que a instituição paga para manter sua cabeça erguida é conhecido. O corregedor Luiz Perine conviveu por anos com a sentença de morte decretada pelo capitão Benedito de Oliveira, fundador do Comando de Operações Especiais (COE). Benedito fugira da prisão depois de ser condenado a 31 anos de prisão por ter matado uma criança e tentado metralhar a namorada, no litoral norte. Ele embrenhou-se na selva peruana, onde treinava os guerrilheiros do Sendero Luminoso e mandava recados a Perine.

A mesma Corregedoria da PM dispõe do setor de PM Vítima, que já abrigou oficiais como o coronel Jairo Paes de Lira e o tenente-coronel Flávio César Fabri. É ela que deve verificar o que houve com o sargento aposentado Reginaldo dos Santos Conceição, abatido a tiros de fuzil por homens do COE, que estavam emboscados na Mata Atlântica. Reginaldo foi confundido com ladrões de trem. Ele trabalharia para a empresa de segurança CampSeg. A tragédia aconteceu no dia 25 de janeiro, em Cubatão, e deixou ainda morto o guarda civil Wagner Coelho e ferido o policial penal Marcelo Hespanhol.

Saber por que os homens do COE estavam ao lado da linha do trem e o que faziam agentes públicos trabalhando como seguranças privados é o que deve ser esclarecido pelas autoridades. É preciso saber quem mandou aquelas pessoas estarem no local e por que as tropas não tinham conhecimento umas das outras. Todos sabem que não é possível acochambrar a morte de um sargento nem a do guarda.

A empresa CampSeg é do empresário e ex-tenente da PM e ex-vereador de Campinas Nelson Santini, que é irmão de José Vicente Santini, assessor especial do governador Tarcísio de Freitas. Nelson é amigo do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, de quem foi o maior doador pessoal de sua última vitoriosa para deputado federal – R$ 88 mil, segundo a Justiça Eleitoral. Derrite e Nelson trabalharam juntos nas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) antes de ambos entrarem para a política.

É preciso saber por que o Estado decidiu empregar meios do policiamento ostensivo para vigiar a estrada de ferro em áreas rurais da Baixada Santista em meio à alta temporada de turismo, entre janeiro e o carnaval, quando os roubos de carro aumentavam (16%) na região e uma onda de sequestros da quadrilha do PIX ameaçava quem se dirigia a São Paulo pela Piaçaguera-Guarujá. Não seria melhor apostar nas investigações do Deic para prender as quadrilhas de roubo de carga, como defendem especialistas em Segurança Pública?

Foi preciso que os homens comandados pelo delegado Fábio Nelson, da Divisão Antissequestro (DAS), saíssem de São Paulo para desarticular, em Cubatão, uma das mais ousadas quadrilhas, que sequestrava suas vítimas simulando bloqueios nas estradas e as levava para cativeiros em comunidades pobres. Agia sem ser incomodada nas estradas. Só em 23 de janeiro, dois casais que voltavam do Guarujá para São Paulo foram abordados de madrugada nos bloqueios dos bandidos. Ambos tiveram suas contas bancárias saqueadas.

Afinal, qual a prioridade da Segurança Pública? As cargas de trem protegidas pela empresa CampSeg, do Tenente Santini, são importantes para a economia do País. As ações da polícia e do Ministério Público contra o roubo e o furto de cargas, atividade ligada ao crime organizado, são também importantíssimas e devem ser realizadas com rigor pelo Estado. Mas, como disse o coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional da Segurança Pública, o combate ao crime é necessário, mas deve ser feito dentro da legalidade.

As mensagens trocadas por policiais nos grupos de WhatsApp mantidos pelos seguranças, documentos, vídeos e áudios obtidos pelo Estadão mostram indícios de que viaturas que atendiam ao 190 foram deslocadas para áreas inóspitas. Além disso, elas sugerem que os gerentes da empresa controlavam passagens de viaturas do Baep e acionariam as equipes diretamente, sem passar pelo 190. O mesmo ocorreria com o helicóptero Águia, da PM, conforme conversas mantidas nos grupos que foram desfeitos no dia 4, após o Estadão procurar a Secretaria de Segurança e a CampSeg.

Os coronéis Rui César Melo e Nivaldo Restino, ex-comandantes-gerais da Polícia Militar de São Paulo, disseram que os supostos desvios de PMs e de materiais da PM, caso sejam comprovados, são condutas condenáveis em termos operacionais e disciplinares. Para eles, o Comando Geral vai apurar o caso com “isenção e rigor”. A coluna ouviu ainda outros coronéis da corporação, que afirmaram que as denúncias devem ser apuradas, pois o policial e sua atividade não podem ser usados para fins de segurança privada.

“A PM é uma instituição de Estado com quase 200 anos. E a missão de quem está lá dentro é preservar essa história. São Paulo é grande não só por sua população, mas também por sua polícia. O que está sendo relatado é uma coisa completamente condenável em termos operacionais e disciplinares. A polícia estadual não é para isso”, afirmou Melo, que comandou a PM de 1999 a 2002.

Mello também afirmou que o helicóptero Águia deve apoiar o policial de serviço e não deve ser usado no chamado bico. “Ele (o helicóptero) não é destinado à segurança privada. O comando geral tem de atuar de forma enérgica. Apurar tudo e punir. Não pode acomodar essa história. A história da PM de São Paulo não permite isso.”

Também enérgica foi a reação do coronel Restivo, que comandou a corporação de 2017 a 2018 e foi secretário da Administração Penitenciária de 2019 a 2022. “Tenho convicção de que o comando da PM vai apurar os fatos. E, se houver responsabilidades, a instituição não ficará inerte e será dura, como tem sido em sua história. Tenho certeza de que o comando vai apurar com isenção e rigor.” O coronel também afirmou que a legislação da SAP é tão ou mais rígida do que a PM em relação a coibir que atividades de segurança privada sejam exercidas por seus agentes.

Os coronéis ouvidos pela coluna afirmam que a PM tem tropas que poderiam ser usadas na área rural, como a patrulha rural, e dizem que não seria correto deslocar viaturas que atendem ao 190 para tal atividade. Para ele, é necessário primeiro se priorizar a proteção de vidas e, depois, o patrimônio e que o policiamento normal não pode ser deslocado da proteção de toda a sociedade para privilegiar a proteção ao patrimônio de uma única empresa.

À suposta destinação incorreta dos meios, soma-se a suspeita de favorecimento e de uso de policiais em atividades de segurança, como se fossem uma espécie de milícia privada. “Quando isso acontece, corrompe-se o serviço público, que se torna uma atividade privada”, afirmou o coronel José Vicente da Silva Filho, que foi secretário nacional de Segurança Pública.

Para ele, os fatos narrados ao Estadão e os documentos mostram uma situação preocupante. “Isso é de uma gravidade ímpar. É o caso de oficiais serem postos em conselho de justificação, pois se trata de comportamento indigno do oficialato”, afirmou. O coronel disse ter certeza de que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) tomará providências enérgicas nesse caso. Já a Secretaria da Segurança Pública informou que toda denúncia de uso de policiais em atividade privada será apurada. Diante da gravidade dos indícios do caso, nem se esperava outra coisa.

Estadão